O finado Carrapicho

DJ MALUCO - Volume 01 - CD COMPLETO - soforrofm.com.br - YouTube
DJ Maluco, um dos preferidos do público do Carrapicho.

Artigo de opinião originalmente publicado em Conversa Informal, jornal comunitário do Setor Habitacional Vicente Pires, Região Administrativa XXX do Distrito Federal. Ano 18, n. 06/2021, Disponível em: <https://jornalconversainformal.blogspot.com/2021/06/jornal-conversa-informal-de-junho-2021.html>. Acesso em 07 dez. 2021.

Como é que você foi embora sem dizer pelo menos adeus! Para falar sobre esse assunto, nada melhor do que começar pelo seu hino. A música “Cobertor” da banda Calcinha Preta certamente é um marco para todos que frequentaram o Carrapicho, um conhecido bar/danceteria (ainda dizem danceteria?) do final da década de 1990 e início dos anos 2000. Ficava na entrada da rua 4C com a EPTG (Estrada Parque Taguatinga) e era um local de muita diversão.

Tal qual a construção de cidades portuguesas do período colonial era o estacionamento do recinto: uma parte baixa, próxima ao cachorro-quente da área externa em que se fazia o “esquenta”, e um num local mais elevado, uma pequena colina de Vicente Pires. O bicicletário – sim, o público praticava o transporte alternativo – funcionava em dois lugares: no poste de luz e na própria grade de alambrado que cercava o local. Um senhor com um colete laranja manchado e rasgado vigiava os carros e era conhecido dos frequentadores assíduos como eu e meus amigos filhos de donos de chácaras que cresceram na região.

Havia uma bilheteria para comprar o ingresso. Logo após a revista pelos seguranças recebíamos um comprovante impresso e, caso quiséssemos sair, era só entregar esse papel que, de prontidão, carimbavam nosso braço, uma prova de que já havíamos comprado a entrada e poderíamos retornar. Perdi a conta de quantos carimbos recebi da “alguma coisa advogados associados”, “recebido em” ou “fulano contabilidade geral”. Como “ishpertu” tem em todo lugar, alguns que saiam umedeciam o carimbo e passavam pelo braço para outros que não tinham comprado o ingresso da noite. Melhor que tentar pular o alambrado e ser pego pelo segurança.

Mas não se engane: violência não era o forte do Carrapicho. Ali bebiam lado a lado o travesti vestido de onça com uma pessoa heterossexual. Seria inocência falar que não existia homofobia naquele tempo, mas ai de quem no Carrapicho quisesse falar algo ofensivo à um dos homossexuais – o estabelecimento zelava pela coletividade respeitando a individualidade, com todo o cuidado para não confundir individualidade como sinônimo de preconceito. Saudades de quando o racismo e a homofobia ainda se limitavam ao esgoto da deep web.

No Carrapicho não tinha muito luxo, mas sobrava felicidade. Engana-se quem pensa que por ser um local popular o banheiro era algo imundo. Podemos citar vários bares de locais nobres do DF em que o banheiro cheira a quilômetros de distância. Os petiscos eram bem servidos, os garçons atenciosos e os seguranças não seguiam pessoas negras como se suspeitos fossem, até porque as pessoas negras eram maioria. O palco estava quase no mesmo nível da pista de dança e equipamentos de som e iluminação como amplificadores, globo e máquina de fumaça faziam a alegria de todos. As mesas eram limpas com regularidade e para não dizer que não há críticas, não havia acessibilidade para cadeirantes.

A música era forró a noite inteira, sobretudo de bandas nordestinas. Os cantores eram um show à parte. Um dos mais conhecidos vestia uma regata brilhosa roxa, com cabelos ondulados parecendo o Luís Caldas e uma calça apertada bem antes de Tiririca ou João Dória “lançarem” a moda. DJ Maluco, Aviões do Forró, Mastruz com Leite, Washington Brasileiro eram os artistas mais tocados. Aliás, Washington Brasileiro chegou a se apresentar no Carrapicho. O valor do ingresso foi cerca do triplo do praticado e o público deu o recado: um sábado vazio. Naquela noite ficou evidente que o Carrapicho era, antes de tudo, um local de resistência da cultura popular e não se sujeitaria às regras do mercado, ao menos não todas elas.

Numa época sem Whats App ou redes sociais, não era preciso combinar para que a juventude de VP e redondezas se encontrasse no sábado à noite para balançar o esqueleto. Não sei se lamento ou agradeço por não termos celulares com câmera naquele tempo. Há casais, divorciados e amigos que hoje habitam o bairro e se conheceram no Carrapicho. Verdade seja dita, o local piorou quando alguns inconsequentes passaram a fazer eventos paralelos com som automotivo no estacionamento, posteriormente migrando para o Tagua Parque.

O Carrapicho fechou as portas em meados de 2004, pouco antes do início das obras da ampliação da EPTG. O aumento da via obrigou também ao fechamento do Amarelinho, outro conhecido bar que ficava às margens da via. Pouco mais à frente, a casa de shows A+.Com, por ter entrada e bebida mais cara, herdou parte do público de maior renda do Carrapicho, mas também faliu depois de alguns anos. O Carrapicho ficou na memória como uma das maiores e melhores casa de eventos do DF, esquecido pelos grandes jornais por sua maior virtude: ser uma casa do povo para o povo!

Sobre ayanrafael

Pedagogo, Assistente Social e Mestre em Educação pela Universidade de Brasília. Trabalhou como técnico-administrativo na Universidade de Brasília, como Professor de Atividades da SEEDF (Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal) e atualmente é Especialista Socioeducativo - Pedagogo na Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal, lotado no Centro Integrado 18 de Maio.
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