
Artigo de opinião originalmente publicado em Conversa Informal, jornal comunitário do Setor Habitacional Vicente Pires, Região Administrativa XXX do Distrito Federal. Ano 18, n. 06/2021, Disponível em: <https://jornalconversainformal.blogspot.com/2021/06/jornal-conversa-informal-de-junho-2021.html>. Acesso em 07 dez. 2021.
Como é que você foi embora sem dizer pelo menos adeus! Para falar sobre esse assunto, nada melhor do que começar pelo seu hino. A música “Cobertor” da banda Calcinha Preta certamente é um marco para todos que frequentaram o Carrapicho, um conhecido bar/danceteria (ainda dizem danceteria?) do final da década de 1990 e início dos anos 2000. Ficava na entrada da rua 4C com a EPTG (Estrada Parque Taguatinga) e era um local de muita diversão.
Tal qual a construção de cidades portuguesas do período colonial era o estacionamento do recinto: uma parte baixa, próxima ao cachorro-quente da área externa em que se fazia o “esquenta”, e um num local mais elevado, uma pequena colina de Vicente Pires. O bicicletário – sim, o público praticava o transporte alternativo – funcionava em dois lugares: no poste de luz e na própria grade de alambrado que cercava o local. Um senhor com um colete laranja manchado e rasgado vigiava os carros e era conhecido dos frequentadores assíduos como eu e meus amigos filhos de donos de chácaras que cresceram na região.
Havia uma bilheteria para comprar o ingresso. Logo após a revista pelos seguranças recebíamos um comprovante impresso e, caso quiséssemos sair, era só entregar esse papel que, de prontidão, carimbavam nosso braço, uma prova de que já havíamos comprado a entrada e poderíamos retornar. Perdi a conta de quantos carimbos recebi da “alguma coisa advogados associados”, “recebido em” ou “fulano contabilidade geral”. Como “ishpertu” tem em todo lugar, alguns que saiam umedeciam o carimbo e passavam pelo braço para outros que não tinham comprado o ingresso da noite. Melhor que tentar pular o alambrado e ser pego pelo segurança.
Mas não se engane: violência não era o forte do Carrapicho. Ali bebiam lado a lado o travesti vestido de onça com uma pessoa heterossexual. Seria inocência falar que não existia homofobia naquele tempo, mas ai de quem no Carrapicho quisesse falar algo ofensivo à um dos homossexuais – o estabelecimento zelava pela coletividade respeitando a individualidade, com todo o cuidado para não confundir individualidade como sinônimo de preconceito. Saudades de quando o racismo e a homofobia ainda se limitavam ao esgoto da deep web.
No Carrapicho não tinha muito luxo, mas sobrava felicidade. Engana-se quem pensa que por ser um local popular o banheiro era algo imundo. Podemos citar vários bares de locais nobres do DF em que o banheiro cheira a quilômetros de distância. Os petiscos eram bem servidos, os garçons atenciosos e os seguranças não seguiam pessoas negras como se suspeitos fossem, até porque as pessoas negras eram maioria. O palco estava quase no mesmo nível da pista de dança e equipamentos de som e iluminação como amplificadores, globo e máquina de fumaça faziam a alegria de todos. As mesas eram limpas com regularidade e para não dizer que não há críticas, não havia acessibilidade para cadeirantes.
A música era forró a noite inteira, sobretudo de bandas nordestinas. Os cantores eram um show à parte. Um dos mais conhecidos vestia uma regata brilhosa roxa, com cabelos ondulados parecendo o Luís Caldas e uma calça apertada bem antes de Tiririca ou João Dória “lançarem” a moda. DJ Maluco, Aviões do Forró, Mastruz com Leite, Washington Brasileiro eram os artistas mais tocados. Aliás, Washington Brasileiro chegou a se apresentar no Carrapicho. O valor do ingresso foi cerca do triplo do praticado e o público deu o recado: um sábado vazio. Naquela noite ficou evidente que o Carrapicho era, antes de tudo, um local de resistência da cultura popular e não se sujeitaria às regras do mercado, ao menos não todas elas.
Numa época sem Whats App ou redes sociais, não era preciso combinar para que a juventude de VP e redondezas se encontrasse no sábado à noite para balançar o esqueleto. Não sei se lamento ou agradeço por não termos celulares com câmera naquele tempo. Há casais, divorciados e amigos que hoje habitam o bairro e se conheceram no Carrapicho. Verdade seja dita, o local piorou quando alguns inconsequentes passaram a fazer eventos paralelos com som automotivo no estacionamento, posteriormente migrando para o Tagua Parque.
O Carrapicho fechou as portas em meados de 2004, pouco antes do início das obras da ampliação da EPTG. O aumento da via obrigou também ao fechamento do Amarelinho, outro conhecido bar que ficava às margens da via. Pouco mais à frente, a casa de shows A+.Com, por ter entrada e bebida mais cara, herdou parte do público de maior renda do Carrapicho, mas também faliu depois de alguns anos. O Carrapicho ficou na memória como uma das maiores e melhores casa de eventos do DF, esquecido pelos grandes jornais por sua maior virtude: ser uma casa do povo para o povo!