
Artigo de opinião originalmente publicado em Conversa Informal, jornal comunitário do Setor Habitacional Vicente Pires, Região Administrativa XXX do Distrito Federal. Ano 19, n. 07/2022, p. 7. Disponível em: <https://jornalconversainformal.blogspot.com/2022/07/jornal-conversa-informal-de-julho-22.html>. Acesso em 10 jul. 2022.
Existem perguntas que não existem. Paradoxal? Contraditório? Explico: não existe perguntar se uma pessoa é a favor do aborto, embora esta seja uma pergunta frequente. Se você é mulher já me entendeu, mas como há homens que me leem vou desenhar: hipoteticamente, imagine que homens podem engravidar e mulheres não. Assim, você homem tem uma relação sexual e, de repente, sua menstruação atrasa e a barriga começa a crescer juntamente com enjoos, vertigens e sensações de cansaço. Rapidamente você faria o teste e descobriria que está grávido, mas suponha que não deseja criar a criança ou estar gestante. Resta, então, realizar o aborto, um procedimento invasivo e que mesmo no início da gravidez é perigoso, com consequências físicas e psicológicas até mesmo para a filha da madame que engravida no Brasil e aborta na Europa. Logo, quem pode OPTAR em passar por momento tão dolorido assim correndo o risco de morrer?
Nesse sentido, foi destaque nacional e inclusive no exterior o caso da juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina, que agiu para que uma criança de 11 anos, vítima de estupro, não conseguisse abortar legalmente. As falas da juíza causam nojo, quando não ódio pelo tamanho da violência institucional. Falo isso principalmente porque trabalho diretamente com crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e, portanto, com foco na proteção da vítima e não na responsabilização do abusador ou, pior, em me vestir de condutas morais que em nada agregam para fortalecer o Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes.
A juíza Zimmer fez perguntas como “o que você quer de aniversário? Escolher o nome da criança?”, “você acha que o pai da criança deixaria que ela fosse adotada” ou ainda “você pode esperar mais um pouquinho para que ela tenha mais chances de sobreviver ao parto?”. Todas estas intervenções constituem crime e vão de encontro à legislação brasileira. Não obstante, a juíza colocou a criança num abrigo, separando-a por cerca de um mês da genitora, para impedir, de forma legal, a realização do aborto pela mãe da criança grávida. Relembrando que gravidez de criança é sempre de risco, pois o corpo está em formação e as condições psicológicas de uma criança cuidar de outra sequer existem, daí a idade de consentimento para manter relações sexuais ser de 14 anos.
Dito isso, reflita: e se fosse a sua filha?
O moralismo de quem acha que a criança não deveria abortar, como o corrupto genocida que nos preside, lembra bastante a série O Conto da Aia (The Handmaid´s Tale, disponível na Globoplay, Paramount Plus e Amazon Prime Video). Na série, a quase totalidade das mulheres e homens no mundo tornam-se inférteis. Assim, o Estados Unidos sofre um golpe e começa a ser liderado por uma organização machista e militarizada, com papéis bem delimitados de cada pessoa na sociedade. As mulheres não podem ler e tampouco contestar seus maridos comandantes. No período fértil das aias, as esposas dos comandantes participam do ritual de estupro sob a desculpa de salvação da espécie, com leitura da bíblia como pano de fundo para a prática criminosa. Na hora do parto das aias, as esposas dos comandantes, sempre inférteis, gemem como se elas próprias sentissem as dores do parto. O seriado mostra o uso da religião não para congregação entre as pessoas, mas para a manipulação e perpetuação do patriarcado.
Se homem engravidasse, o aborto já estaria legalizado no Brasil. Sinto-me incomodado em falar de aborto por ser homem, uma vez que essa era para ser uma política pública decidida no voto somente por mulheres e após intensos debates. Se nas redes sociais as mulheres de sua família condenam o aborto, experimente fazer o seguinte experimento social no próximo natal:
1) Passe uma caixa de sapato com um pequeno buraco no meio.
2) Distribua uma cédula com duas respostas de marcação, sim ou não.
3) Ao invés de perguntar se elas são a favor do aborto, pergunte se já abortaram.
4) Garanta o anonimato das respostas.
Pronto, você já sabe que aborto é um assunto muito mais próximo de sua vida e da de familiares do que pensava. Resta saber se também condenará seus parentes da forma como faz com crianças de 11 anos vítimas de estupro e da violência institucional de juízas como Zimmer.
Clique aqui para ver o resumo da primeira temporada de The Handmaid´s Tale
