
Artigo de opinião originalmente publicado em Conversa Informal, jornal comunitário do Setor Habitacional Vicente Pires, Região Administrativa XXX do Distrito Federal. Ano 18, n. 07/2021, Disponível em: <https://jornalconversainformal.blogspot.com/2021/06/jornal-conversa-informal-julho-2021.html>. Acesso em 08 dez. 2021.
Engana-se quem pensa que a boiada passa somente no Ministério do Meio Ambiente. A Reforma Administrativa pautada pelo Congresso Nacional ameaça um Estado democrático de direito que seja minimamente autônomo e forte diante de pressões políticas de qualquer que seja a coloração partidária: a valorização do serviço público e, em especial, a estabilidade dos servidores.
Imaginemos que para obras de pavimentação em Vicente Pires não tivéssemos servidores de carreira especializados para eliminar ou ao menos mitigar vícios de um processo licitatório. Qual empresa ganharia? Certamente a que oferecesse a maior propina “por fora” para a pasta de obras do governo e assim desviariam milhões dos recursos constituídos pela contribuição de cada cidadão. É o engenheiro de carreira, portanto investido em vaga de concurso, estável, que pode se negar a assinar documento ilegal. Fosse um indicado por um pastor da base do governo, faria o que lhe mandassem ou seria exonerado de imediato.
Outros exemplos de serviço público: segurança pública (policiamento ostensivo, investigação de crimes, registro de armas), educação (alfabetização, ensino técnico e superior, educação para povos originários, formação para a cidadania), assistência social (auxílios e benefícios à deficientes, população em situação de rua, pessoas em insegurança alimentar), meio ambiente (multa por desmatamento ou pesca ilegal, conservação de áreas de proteção ambiental, demarcação de terras), infraestrutura (construção de hidrovias, hidrelétricas, estradas, usinas), transporte, habitação, saúde (desnecessário falar o tanto de vidas que o SUS salvou). Enfim, não há nação próspera sem que se tenham servidores concursados atuando de forma eficiente para que o dinheiro público seja bem investido. E não se iluda: o Brasil tem menos servidores públicos que muitos países liberais clássicos.
Um dos principais pontos da Reforma Administrativa é o ataque à estabilidade. Os concursados darão lugar ao tio do vizinho do primo do deputado distrital que é base do governo – mas só até brigarem! Não haverá mais corte mínimo de nota em conhecimentos básicos e específicos, prova dissertativa (redação), investigação de vida pregressa, teste psicotécnico e curso de formação, substituindo muitas vezes quem passa por todo esse processo por semianalfabetos dispostos a assinar qualquer coisa para se manter no cargo. O resultado prático disso são as administrações regionais do DF: um circo de horror com puxas-sacos em vagas tão precarizadas que aceitam até produzirem redes sociais pessoais de administradores em campanha antecipada para o Legislativo.
Existem servidores concursados ruins? É certo que sim, mas são minoria. Após a Lei 8.112/1990 e outras leis advindas desta que regulamentam o serviço público em nível estadual temos pessoas com perfil empreendedor que trouxeram inúmeras soluções para um serviço público marcado até então pelo QI (Quem Indica). Em outras palavras: a Reforma Administrativa quer que o serviço público volte para antes da Constituição de 1988 em que o Estado era sequestrado pelo governo de plantão.
A corrupção não surgiu com a estabilidade dos servidores – ao contrário, diminuiu. Os grandes casos de corrupção que ganham a mídia são em geral de cargos comissionados indicados por governantes, uma vez que os servidores de carreira têm muito a perder cedendo à ilegalidade. O exemplo mais recente é o do servidor do Ministério da Saúde e a compra da Covaxin: não fosse ele concursado não haveria denúncia e, quando soubéssemos, seria ele o boi de piranha da situação. Corrupção envolvendo empreiteiras e prestação de serviços como limpeza e conservação de cemitérios ou vias públicas, segurança patrimonial e outras tem uma equação simples que se repete há décadas: um testa de ferro como chefe e a partir dele vários subordinados, todos em cargos comissionados, se aproveitando de desvios de verbas públicas até ser pego por fiscalização do tribunal de contas ou denúncia anônima à imprensa. Descobertos, são exonerados e outros nomes com as mesmas práticas voltam para a mesma equação, gerando obviamente o mesmo resultado.
A estratégia para aprovar a Reforma Administrativa e a partir daí terem mais influência através de indicações é colocar a população contra os concursados. Percebam que as regalias dos militares de alta patente e do Judiciário (como os juízes que quando são pegos em casos de corrupção aposentam com salário integral) permanecem inertes na Reforma. A estrutura que permite a entrada indiscriminada de pessoas estranhas à administração pública também. Não é preciso dizer que é necessário que se trabalhe com uma margem de pessoas não concursadas – e que estas sejam capacitadas para a função –, mas nada que distorça a característica de servir ao Estado e não ao governo. E que os cargos de chefia, embora não exclusivos, sejam prioritários aos concursados. Portanto, é o investimento em servidores de carreira e não a sua degola que fará o país avançar. Seja qual for a sua ideologia (Lula, Bolsonaro, isentão ou outra), o Estado só fica inchado quando ocupado por corruptos ou incompetentes uma vez que servidor qualificado e estável nunca é demais.