
Artigo de opinião originalmente publicado em Conversa Informal, jornal comunitário do Setor Habitacional Vicente Pires, Região Administrativa XXX do Distrito Federal. Ano 18, n. 05/2021, Disponível em: <https://jornalconversainformal.blogspot.com/2021/05/jornal-conversa-informal-de-maio-2021.html>. Acesso em 07 dez. 2021.
No dia 02/04/2021 o Correio Braziliense noticiou um caso de trabalho análogo à escravidão em Vicente Pires. Cito alguns dos problemas do local autuado, uma chácara que cultiva hortaliças: guarda inapropriada de agrotóxicos, falta de treinamento e EPI (Equipamento de Proteção Individual) para os trabalhadores, alojamento com instalações elétricas e sanitárias precárias e descumprimento da CLT quanto a descanso e pagamento de horas extras. Foram resgatados cinco trabalhadores piauienses e um goiano. A história revela um passado que, infelizmente, ainda é presente no bairro e têm implicações de ordem ambiental e social para a comunidade. Volto aqui à minha infância em Vicente Pires para ilustrar o caso.
Na década de 1990 era comum vermos trabalhadores agrícolas em Vicente Pires. Eram chamados genericamente de “baianos”, uma forma preconceituosa de regionalizar trabalhadores e desumanizá-los pelo que a região nordeste representa para a acéfala classe média e elite do Centro-Sul do país. Conheci vários daqueles “baianos” que jogavam futebol com meu ex-cunhado e as condições de trabalho à época são exatamente as mesmas que o Ministério Público do Trabalho (MPT) encontrou em VP 30 anos depois.
Por questão ética vou contar o milagre e não o santo. Naquele tempo um vizinho próximo que era caseiro e semianalfabeto colocou vários “baianos” para trabalhar para ele em outras chácaras. Eram uns 20, no mínimo. Dormiam em beliches dentro de contêineres em que a única entrada de ar era a porta. Quando ia estudar de manhã os encontrava andando pelas ruas ainda não nomeadas de VP, alguns em bicicletas Barra Circular, segurando facões ou enxadas como se parte do corpo fosse. De noite, após o banho, faziam a fila para a janta. A esposa do caseiro, volta e meia de olho roxo por causa da violência doméstica, fazia o prato para dividir igualmente entre todos e quem terminava primeiro perguntava se havia sobra. Ali, sem esteira fordista, revelava-se a divisão social do trabalho mais clara do que qualquer palestra acadêmica.
O caseiro também mantinha um bar em sua residência e um caderno imundo em que uma vizinha alfabetizada fazia as contas dos devedores e controle de estoque. Não precisa nem dizer que o salário dos “baianos” ficava boa parte retido nos custos com alojamento, alimentação e bebidas alcoólicas na Ópera do Malandro de circulação local. Dessa forma a exploração atingia inclusive a esfera da vida pessoal de cada trabalhador, da janta com carne de terceira à cachaça para esquecer o dia sofrido no arado. Não podiam sequer comer as hortaliças que plantavam nas chácaras, algo que era permitido em domingos e dias santos aos escravizados no Brasil e aos vassalos durante os contratos da Idade Média na Europa.
O uso incorreto de agrotóxicos e a construção inadequada de fossa séptica não prejudicam somente os “novos” “baianos” de Vicente Pires, que de novos não têm nada. A poluição do solo, da água e do ar tem impacto ambiental direto na região e indireto em quem consome os produtos ali cultivados, sejam eles vendidos na Feira do Produtor ou em outro local. O trabalho análogo à escravidão pode deixar a couve e o agrião com preço mais acessível, mas traz junto à salada um trabalhador com problema mental na mesma fila atrás de você na padaria. A degradação ambiental paralela a desumanização do trabalho traz o ingrediente perfeito para um barril de pólvora que o MPT ajudou a desarmar.
As pessoas acham que destratar trabalhadores é algo que só ocorre no plantio de cana-de-açúcar no Nordeste ou com bolivianos que vivem em São Paulo e fabricam, em algum porão, a próxima coleção de roupas da Riachuelo. Ledo engano! Geralmente as pessoas não sabem sobre a história do lugar que habitam. Contudo, conhecer e reconhecer o espaço geográfico e atuar nas possibilidades de que seja um lugar mais acolhedor não é tarefa exclusiva de líderes comunitários. A garagem, a sala e o quarto de muito morador hoje em dia já foram um contêiner que parecia um navio negreiro do século XX, um banheiro seco sem papel higiênico ou o varal em que se secava a única calça jeans de trabalho. E pode ser que atualmente o desconhecido outro lado do muro da casa ainda guarde, tão vivo como antes, toda a podridão que é o trabalho análogo à escravidão. Denunciar chácaras que ainda operam de forma negligente com trabalhadores rurais deve ser uma ação permanente de cada um de nós e olha que nem precisa se identificar. Boicotar produtores ou comerciantes que trabalham com produtos feitos por essa mão-de-obra é outra possibilidade.
E você, está de que lado do muro?