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Artigo de opinião originalmente publicado em Conversa Informal, jornal comunitário do Setor Habitacional Vicente Pires, Região Administrativa XXX do Distrito Federal. Ano 18, n. 11/2021, Disponível em: <https://jornalconversainformal.blogspot.com/2021/11/jornal-conversa-informal-de-novembro.html>. Acesso em 08 dez. 2021.
Uma vez na adolescência, viajando com meu pai, pedi que ele parasse o carro porque estava com fome. Ele me disse que pararia, mas ressaltou que o que eu sentia era vontade de comer, algo diferente de fome, que nunca passei. Perguntar não ofende: você difere fome de vontade de comer?
É notório o aumento do número de pessoas em Vicente Pires revirando lixo. Porém, se antes eram apenas catadores de materiais recicláveis, hoje somam-se pessoas que não tem o que comer. Enxergam, portanto, o óbvio: chegar antes do caminhão do SLU (Serviço de Limpeza Urbana) e, dessa forma, aproveitar melhor restos de alimentos que descartamos no lixo doméstico.
O Brasil alimentou 1 bilhão de pessoas em 2020. Ainda naquele ano 10 milhões de habitantes passaram fome, sendo que o número dobrou em 2021. Vale notar que esse dado é apenas de alimentos, deixando de fora grãos que são exportados para fins de ração animal como parte da soja. Outra observação importante é que entre a população que passa fome e a que se alimenta adequadamente há um número ainda maior na categoria insegurança alimentar, ou seja, pessoas que não acessam regularmente alimentos em qualidade e quantidade suficiente para a sobrevivência.
A pandemia de Covid-19 acelerou o aumento do desemprego e a perda de massa salarial atingindo quem não tem dinheiro para investir em paraísos fiscais e lucrar com a alta do dólar. Foi assim que o termo “fila do osso” se tornou familiar para os mais pobres. Carne passou a ser artigo tão comum como bacalhau da Noruega nas menores rendas. A crise econômica agravada pela crise política não dá sinais de término e os investimentos que poderiam trazer trabalho e renda ficam cada vez mais longe. Em resumo, não há solução a curto prazo para o número de miseráveis que avançam sobre os contêineres de lixo.
O geógrafo, médico e nutrólogo brasileiro Josué de Castro que presidiu a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) entre 1952 e 1956 e foi quatro vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz tem uma frase que continua atual: o problema da fome não é a seca, mas a cerca. Ora, se podemos alimentar 1 bilhão de pessoas, podemos alimentar 20% desse montante – contando do brasileiro mais pobre ao mais rico. A questão é que latifundiários não cumprem a função social da terra, uma obrigação constitucional. A desapropriação não é feita pelas autoridades competentes até porque parte dela é dona da terra. Contudo, ainda que considerando todo o embasamento legal em prol da especulação imobiliária rural, vejamos algumas soluções reformistas (portanto liberais) para mitigar a fome no Brasil.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é uma alternativa em que o governo compra a produção da agricultura familiar e distribui para quem não pode pagar. O aumento do investimento no Pronaf (Programa de Apoio ao Agricultor Familiar) é outra ideia, com subsídio de bancos públicos aos pequenos agricultores para compra de insumos agrícolas à juros menores que os de mercado. Para quem acha que o governo não tem dinheiro para bancar os dois programas e outros do gênero, saiba que medidas conhecidas como incentivo fiscal já são aplicadas para grandes ruralistas. É verdade que a participação do agronegócio no PIB é de quase 30%, mas a contrapartida exigida dos latifundiários é irrisória e gera uma distribuição de renda que explica em parte a fome no Brasil. É o Estado máximo para o capital e o Estado mínimo para os direitos sociais.
Adiante, o problema do Brasil não é a carga tributária e sim o retorno que se tem dos serviços públicos. Explico: o Brasil é a 12ª economia mundial e a Suécia é a 23ª, ao passo que a carga tributária brasileira é de 35% e a sueca de 43%. Não há protestos nas ruas da Suécia para que o governo aumente o PIB ou corte impostos, tampouco quem considere a rainha sueca uma comunista. Como dizia Betinho: um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda sim pela sua cultura Ler a conjuntura política é fundamental para que não se individualize questão social tão séria quanto a fome. Dizer que alguém não quer trabalhar porque prefere buscar a alimentação em meio à resto de fezes, sangue e outros rejeitos domiciliares é assinar atestado de falta de empatia, com o agravante da pérola por vezes ser dita por quem se apresenta cristão. Nisso José Saramago é taxativo: obscena é a fome.