O mundo ficou perplexo com o atentado terrorista ocorrido na França na última sexta-feira 13. Milhares, talvez milhões de pessoas modificaram a sua foto de perfil no Facebook por uma causa que, de fato, é não só justa como necessária. Os ataques dos jihadistas à alvos civis em Paris não são menos covardes que os bombardeios das forças da OTAN a alvos civis no Oriente Médio, mas nem por isso deixam de chamar a atenção. Contudo, o que não toca o povo brasileiro, infelizmente, são as mortes causadas pela queda de barragem no município de Mariana, Minas Gerais, dia 05/11/2015.
A Vale do Rio Doce, empresa privatizada no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) por valor menor do que o lance inicial do leilão, juntamente com a BHP Billiton Brasil Ltda, são quem de fato comandam a Samarco, mineradora responsável pela barragem. Interessante notar que quando revela os lucros, a Vale do Rio Doce não faz questão de citar a Samarco. Agora, em meio à tragédia anunciada, a Vale faz de tudo para se livrar do nome Samarco. É bom destacar que o Ministério Público de Minas Gerais já havia alertado para o perigo de rompimento da barreira e a falta de um plano de emergência caso isso ocorresse. Com a queda da barragem, formou-se um rio de lama com rejeito de minério de ferro que matou o Rio Doce.
Depois de sair de Mariana (MG), a lama que se misturou ao Rio Doce já percorreu cerca de 500 quilômetros e passou por Governador Valadares (MG), município com quase 300.000 habitantes, e aproxima-se de Baixo Guandu (ES), Colatina (ES) e Linhares (ES), até desembocar no Oceano Atlântico. Estive em Linhares em 2011 e pude ver o valioso trabalho de biólogos no Projeto Tamar, que colabora na reprodução de espécies de tartaruga em extinção. Esse trabalho está em risco! Em alguns municípios, a água passou a valer mais que o minério de ferro exportado pela Vale, transportada com escolta e com preço superfaturado em redes de supermercado corruptas de grandes cidades, como é o caso de Governador Valadares.
E onde está o poder público? Evidentemente o financiamento de campanha também aparece como um problema relacionado a esse caso. Vejamos o chamado Clube dos Seis[1], que são os seis partidos que mais receberam doação da Vale do Rio Doce nas eleições de 2014:
PMDB – R$ 23.550.000
PT – R$ 8.250.000
PSDB – R$ 6.960.000
PSB – R$ 3.500.000
PP – R$ 1.500.000
PC do B – R$ 1.500.000
Agora fica fácil explicar a razão de Dilma Roussef ter sobrevoado a região somente depois de uma semana, com o braço estendido apontando para algo que desconhece, somente para sair na imprensa uma pose de “estou fazendo alguma coisa”. Do Clube dos Seis, somente o PSDB não faz parte do governo e, mesmo assim, como terceiro beneficiado direto pelo dinheiro sujo de lama e sangue da Vale do Rio Doce, ficou de bico fechado para manter o caixa na próxima eleição. O Planalto aplicou uma multa de 250 milhões na Samarco, mas parece que esqueceu que essa organização criminosa teve, somente em 2014, 7,5 bilhões de lucro. A multa de Dilma corresponde a 3,3% do lucro da Samarco, que é apenas uma das empresas da Vale do Rio Doce que tem lucro bem maior.
A população de várias cidades pelas quais passa o Rio Doce foram colocadas em hotéis e, passados 10 dias, a Vale do Rio Doce ainda não deu qualquer indicação de auxílio financeiro e reconstrução das casas. Os moradores de áreas atingidas assistem atônitos os telejornais repetirem as mesmas informações da França com todos os sinônimos que a língua portuguesa permite e, lá no fim do jornal tem uma reportagem de trinta segundos com as pessoas em cima da ponte vendo a chegada da lama pelo rio, como se o fato se resumisse a isso. As pessoas mortas são tratadas como desaparecidas, como se pudessem aparecer vivas segurando algum galho. Plantas, aves, animais de carga ou domésticos, gado de corte e leiteiro, peixes, todos mortos ou contaminados pelo rejeito. Tem um Zé nessa história com seu cavalo, tem uma criança de 7 anos chamada Maria com seu cachorro Rex, tem idosa com suas galinhas. Tem até vários desses personagens, milhares deles, para falar apenas do ambiente rural, massacrados pela ganância capitalista de uma multinacional que comprou seus fiscais e lhes deu a alcunha de Cunha ou Vossa Excelência.
O Rio Doce morreu e para driblar o problema da falta de água a solução do poder público foi a adição do polímero de acácia negra, que faz sedimentar o rejeito de minério de ferro no fundo do rio para aproveitamento da água mais superficial. Não é preciso ser nenhum gênio para saber que tal medida cria um problema ainda maior que é operar como catalisadora da contaminação do solo e da água, ou o rejeito vai sumir do fundo do rio para outro planeta? Aqui vale a fórmula química de Lavoisier: “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
Um dos fatores que pode explicar a falta de sensibilidade da população brasileira com o caso de Mariana (MG) é uma certa anestesia por ver imagens que considera semelhantes a enxurradas, comuns em países com um déficit habitacional tão grande que faz seus habitantes se arriscarem a habitar encostas. Talvez as pessoas ainda não tenham se atentado para o fato de que há muitas impurezas no minério de ferro, mas há ainda mais nos rejeitos de minério de ferro. Estão nessa lama mistura de produtos químicos utilizados no processo de extrativismo e industrialização do minério, altamente prejudiciais à saúde e alguns até cancerígenos, como o chumbo.
Impotentes, largados a própria sorte, idosos, crianças, pessoas com necessidades especiais e todo o restante da população do qual não costumamos nos lamentar em situações de tragédia aguardam a ação do poder público. Peço desculpas aos que me acharem radical, mas ainda há pessoas a serem encontradas aqui no Brasil. Em nenhum momento falo para as pessoas deixarem de sensibilizar com os mortos da França, mas é que também temos mortos para enterrar, depois de acharmos os corpos. Não custa nada dividir a compaixão da morte dos franceses com a morte do Rio Doce, da economia informal da população ribeirinha, com os idosos que morreram sem água nessa semana de racionamento. E digo isso com muita sobriedade, pois tenho certeza que o sentimento de revolta de muitos não dura mais do que o tempo de login no Facebook: os franceses não estão em suas orações, não te impedem de trabalhar, de beber água potável ou aproveitar o rio de sua cidade. As hashtags #somostodosmineiros ou #somostodoscapixabas ou até #PrayersForBrazil (orações para o Brasil) também podem figurar na sua timeline de indignações de 20 segundos. São tão seres humanos quanto os franceses, nem mais, nem menos. Ficariam felizes de saber que a população brasileira também olha para eles.
Minas Gerais tem mais de 700 barragens, das quais cerca de 450 são barragens de mineração. Temos uma bomba-relógio com a discussão de um Código de Mineração no Congresso Nacional que ameaça passar tal qual passou o Código Florestal, ou seja, sem ressalvas para o capital de multinacionais explorar nossas riquezas sem nenhum cuidado com o nosso povo. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), um ser humano precisa de 50 litros de água por dia para necessidades básicas. A Vale do Rio Doce enviou para Governador Valadares dois vagões com 240.000 litros de água. A água foi descartada após constatado querosene na amostra. Se estivesse boa, a água daria para 4.800 pessoas no município, cerca de 2% da população. Não daria nem para escolher prioridades. O quê mudou da época do descobrimento para os dias de hoje foi apenas a metrópole, pois a colônia de exploração continua de vento em popa. De novidade mesmo só a invenção do CNPJ e a remessa de lucros para o exterior por meios mais escusos do que carregar pepita de ouro no ânus.
[1] Para ler mais sobre Vale do Rio Doce e financiamento de campanhas em 2014, acesse o site do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) clicando aqui.