
Artigo de opinião publicado em Conversa Informal, jornal comunitário do Setor Habitacional Vicente Pires, Região Administrativa XXX do Distrito Federal. Ano 19, n. 03/2022. disponível em: <https://jornalconversainformal.blogspot.com/2022/03/jornal-conversa-informal-de-marco-2022.html>. Acesso em 17 mar. 2022.
Passados 200 anos do grito “independência ou morte” às margens do Riacho do Ipiranga, um mar de lama – e também de mortes – cobre, mais uma vez, a cidade de Petrópolis na região serrana do Rio de Janeiro. O município é conhecido como Cidade Imperial por ter sido um dos locais preferidos de descanso do imperador D. Pedro II. Contudo, Petrópolis também é lembrada pelos sucessivos deslizamentos de terra que ocorrem no período chuvoso. Sempre quando isso ocorre volta à cena o debate sobre a “taxa do príncipe”, ou “taxa do imperador”, ou “taxa dos herdeiros do imperador” ou ainda enfiteuse. Vamos elucidar o que significa esse termo e outros.
Enfiteuse: instituto do direito civil que permite ao proprietário de terras repassá-la à um terceiro (enfiteuta) para uso direto do imóvel (venda, aluguel e hereditariedade). A enfiteuse é executada através da cobrança do foro e do laudêmio.
Foro: aluguel pago anualmente pelo enfiteuta.
Laudêmio: taxa de 2,5% paga toda vez que há transferência da titularidade de enfiteuta.
Pois bem, é meia verdade – e, portanto, meia mentira – que a família real recebe o foro e laudêmio por serem a família real. No século XIX algum membro da família real comprou terras em que hoje se localiza Petrópolis. Com a instituição da República em 1889 a família real foi “indenizada” por meio da enfiteuse. A justificativa para aplicação da enfiteuse, independente de quem a receba, é a de que são terras de difíceis vendas por sua grande extensão ou acesso e que seriam melhor administradas com essa cobrança.
Ora, tentar dar um verniz legal à essa apropriação da família real, igualando-a à um cidadão qualquer que tenha tido suas terras “tomadas” pela República, é algo no mínimo ignorante, senão canalha. A Casa dos Orleans e Bragança fechou os olhos para o tráfico negreiro por quase 4 séculos. D. João VI, antes de retornar à Portugal após Napoleão Bonaparte não ser mais um perigo real, raspou os cofres do Banco do Brasil, recém-criado por ele próprio – com o nosso ouro. A derrama, o quinto e todo metal precioso que existiam nas terras do Novo Mundo e foram usados em igrejas e outros monumentos luxuosos da Europa passaram, grande parte, por Portugal. Os 2 milhões de libras esterlinas pagos à Portugal pelo reconhecimento da independência brasileira, ainda sob o julgo de um imperador português (D. Pedro I) é mais um exemplo da tragicomédia que foi nosso processo de desvinculação da metrópole. Se tem algo que os tataranetos de D. Pedro II não merecem é enfiteuse ou qualquer tipo de reparação por “suas terras”.
Fazendo uma analogia simples, é como se um ladrão tomasse sua casa e roubasse seu dinheiro, passasse 400 anos nela através de seus herdeiros e quando a propriedade fosse reivindicada pelo povo por meio do Estado, os descendentes do invasor reivindicassem direitos. Resumindo: descendentes de colonizadores contra descendentes de colonizados. Sim, deve-se comparar as monarquias da Idade Moderna, absolutistas ou não, constitucionais ou não, à um grupo de invasores. E para quem acha que é legítimo que uma coroa europeia reivindique direito de posse adquiridos antes de 1889, veja o que eles fizeram no processo de neocolonização do século XX na África.
Assim como a África, a América Latina sofre até hoje as consequências de ter sido colônia de exploração do capitalismo europeu. No caso do Brasil, o racismo estrutural, o modelo agroexportador, a proibição de instalação de indústrias, a eugenia promovida com a vinda de imigrantes para a região sul do país, o extermínio dos povos originários e sua cultura, tudo isso é herança que a família real nos deixou. Mas não foi o bastante: acham-se credores e não devedores do Estado brasileiro!
A família real portuguesa sempre quis colocar banca na política brasileira, chegando a patrocinar uma forte campanha pela adoção da monarquia a partir do plebiscito de 1993 no Brasil. Perderam de lavada! Porém, é só aqui que eles têm essa pompa. Em Portugal, a figura do rei ficou para os livros de história e dizer-se descendente de D. Pedro não rende nem mesmo uma selfie em frente à um castelo. Mais cobiçadas são as armaduras de cavaleiros medievais ou o Cristiano Ronaldo. Somente na mentalidade vira-lata e colonialista de alguns brasileiros monarquistas, que inclusive votam em monarquistas para o parlamento de uma república federativa, encontramos terreno fértil para legitimar pagamentos como o foro ou o laudêmio.
Pobre Petrópolis. Rica família virtual portuguesa.