
Artigo de opinião originalmente publicado em Conversa Informal, jornal comunitário da Região Administrativa XXX (Setor Habitacional Vicente Pires) do Distrito Federal, Ano 17, n. 12/2020. Disponível em: <https://jornalconversainformal.blogspot.com/2020/12/jornal-conversa-informal-de-dezenbro.html>. Acesso em: 04 dez. 2021.
É comum que alguns fantasmas “ressuscitem” sempre quando se fala em consciência negra no Brasil: “todas vidas importam”, “100% branco”, o vídeo do Morgan Freeman de 2012 dizendo para pararmos de falar em racismo, a ideia de que somos todos miscigenados e até a de que não existe racismo no Brasil. O ano de 2020 parece ter inovado ou ao menos ter mostrado de forma mais presente a expressão “consciência humana” para sufocar a expressão “consciência negra”. Analisar quais argumentos são válidos é uma questão histórica, mas também filosófica.
Dentro da filosofia temos dois tipos de lógica: formal e dialética. Para pessoas que desconhecem a lógica dialética, fica fácil concordar com argumentos vindos da lógica formal. Por exemplo: se existe camisa “100% negro” também pode ter camisa “100% branco”. Claro, pensa o ignorante – sem ofensas, mas ignorante é quem ignora/desconhece o assunto –, pois podemos ter orgulho da própria pele e isso não é racismo. Se digo “vidas negras importam” e tu dizes “todas as vidas importam”, o ignorante aceita a segunda versão por achá-la inclusiva, pois considera, em teoria, vidas negras e outras vidas. É uma cilada de retórica cartesiana perfeitamente refutável.
Na lógica dialética vê-se o problema em sua ontologia, totalidade, histórica e filosófica. Não é uma questão de incluir uma categoria em outra que se julga maior. Veja só: povos brancos já foram escravizados em algum lugar no mundo? Por certo que sim! Agora atenção na segunda pergunta: povos brancos já foram escravizados por serem brancos? A resposta é taxativa: não! Uma Bula Papal do século XV escrita por Nicolau V e endereçada ao rei português permitia a escravidão de negros por não terem alma. Já os povos indígenas não foram escravizados, uma vez que estavam aqui e não geravam o lucro do comércio escravocrata no oceano Atlântico. E assim foi por 388 anos no Brasil, último país americano a abolir a escravidão e que até hoje não inseriu o negro como sujeito de direitos.
Caso ache que é exagero, experimente pesquisar no Google Imagens os termos “turma de medicina” e “garis”. Outra pesquisa: “clube de golfe” e “presídios”. Aqui a lógica formal já não se sustenta, pois só vai achar que negro gosta de presídio ou não quer ser médico quem compactua com o fascismo. Continuo: logo em seu início, o vestibular de engenharia civil da UnB não teve cotistas negros inscritos. Será que o negro se vê como pedreiro e não como engenheiro? Felizmente a realidade mudou e após políticas de acesso (cotas) e permanência (moradia, alimentação, bolsas, vale livro), cotistas mostraram ter notas iguais ou superiores a alunos do sistema universal.
Na política vemos essas mudanças nas eleições municipais de 2020. Curitiba terá a primeira vereadora negra após 300 anos – e já foi ameaçada de morte. Se negros são metade da população brasileira, por que são 75% dos assassinados ou 80% dos resgatados em regimes de trabalho análogos à escravidão em 2018? Por que ganham menos pelos mesmos trabalhos e têm menor escolaridade? Por que mulheres negras não recebem anestesia em partos na rede pública e ainda ouvem “que aguentam mais a dor”, como denunciado à OMS? Outro exercício: pegue revistas populares em sua casa (Época, Isto É, Veja, Marie Claire, Jequiti) e veja como negros são representados, quando são. Sempre fiz este trabalho quando lecionei no Ensino Fundamental e os estudantes de 10 anos ficavam perplexos por não se encontrarem nas revistas. Se isso não é racismo, o que é então? Em resumo, quando se tenta esconder a luta do povo negro em termos em que a lógica formal caracteriza como inclusivos, é dever da lógica dialética apresentar esta armadilha e denunciar que esta é mais uma forma de racismo. Absolutamente tudo o que a população negra conquistou no país não é fruto de uma canetada, como a princesa Isabel assinando a abolição na novela Escrava Isaura. Quando uma pessoa se diz “100% negra” é esta luta que ela traz, o orgulho de enfrentar vários problemas que brancos não passaram. Qual a luta dos brancos por serem brancos? Nenhuma! Quando se fala em consciência negra o objetivo é mostrar que são excluídos. Portanto, não se deve permitir que a luta dos negros seja tratorada por engodos racistas que têm como horizonte o abafamento das conquistas desta população às custas dos desavisados e dos que agem de má fé ao optar pela expressão “consciência humana”. Quer ver como é racismo? Defina o que é consciência humana ou diga qual autor fala disso. Tá vendo como sua intenção foi somente encobrir a expressão consciência negra?