
Artigo de opinião originalmente publicado em Conversa Informal, jornal comunitário da Região Administrativa XXX (Setor Habitacional Vicente Pires) do Distrito Federal. Ano 18, n. 03/2021, Março de 2021. Disponível em: <https://jornalconversainformal.blogspot.com/2021/03/jornal-conversa-informal-de-marco-21.html>. Acesso em: 03 dez. 2021.
Uma das lembranças mais remotas que tenho da primeira infância é acompanhar minha irmã em seu trabalho na década de 1980. Ela entrou para a Polícia Federal e trabalhava como papiloscopista no final da Asa Sul. Lembro bem de girar manivelas e mover estantes enormes com milhares de pastas com documentos que integravam arquivos dos maiores criminosos do país. Para empresas e serviço público, da padaria ao Senado Federal, arquivar é sempre um processo constante e que acompanha a humanidade desde a invenção da escrita.
Ao longo do tempo essa ciência ganhou mais importância. Dos copistas da Idade Média à produção de livros em escala industrial com a invenção da imprensa por Johann Gutemberg (sec. XV), chegamos ao século XX sob um volume documental jamais visto. E não é só papel: áudios, vídeos, fotos e outras formas de registros passaram a ser comuns em arquivos institucionais ou pessoais.
No século XXI, com a massificação da internet, computadores e smartphones, a arquivologia não enquanto ciência mas testada como senso comum passa a ser parte da rotina. Não é exagero dizer que no presente temos mais fotos digitais do que álbuns com fotos impressas. Os comprovantes de pagamento ficam salvos no computador ou, para serem acessados de qualquer lugar, são armazenados em nuvem no aplicativo do banco ou enviados por e-mail. O vídeo do filho aprendendo a andar está numa pasta no celular e é compartilhado em segundos em grupos de Whats App. Ah, sim: o Whats App também tem opção de arquivar mensagens ou você pode criar uma conversa com seu próprio número e utilizar como um arquivo mais fácil de acessar.
Sei que arquivistas vão me odiar por escrever isso, mas vamos lá: os exemplos do parágrafo anterior são de como o senso comum utiliza a arquivologia, ainda que de forma rudimentar. A tentativa de organizar documentos foi o que motivou o nascimento da arquivologia e é claro que não podemos reduzir a ciência aos inúmeros arquivamentos que fazemos diariamente. Portanto, quase sempre, se bem nomeado é bem mais fácil encontrar um documento digital do que impresso.
Achar um documento ficou mais fácil devido às tags, termo que em inglês quer dizer etiqueta. Qualquer palavra escrita no Twitter, Facebook, Instagram ou no blog é uma tag e pode ser pesquisada a partir de um buscador como Google. Em caráter mais reservado, e-mail e Whats App também operam dessa forma. O uso de ferramentas como o CTRL + F encontra facilmente um termo no Diário Oficial do DF ou numa página da internet sem que precise ler todo o conteúdo. Fora da Web, o nome de um arquivo no computador também é uma tag e pode ser encontrado mesmo off line. Facilidades do mundo digital.
Quando comecei a trabalhar na UnB em 2004 existia o UnBDoc. O sistema trazia metadados para identificar o processo, como interessado e assunto. A unidade geradora e número do processo, gerados automaticamente, permitiam acompanhar somente a tramitação. Toda unidade que recebia o processo físico tinha que entrar no sistema e clicar em “acusar recebimento” para indicar em qual local o processo estava. Hoje em dia a coisa evoluiu: a PGR utiliza o sistema Único. O GDF já utilizou o SICOOP (Sistema Integrado de Controle de Processos) e agora opera com o SEI (Sistema Eletrônico de Informações). Para além de tramitação os sistemas atuais permitem que toda documentação seja incluída no processo, incluindo imagens e vídeos. Não existe mais carro que sai determinado dia da semana com malote. Mais que isso: assim como a foto de aniversário compartilhada pelo celular, o processo pode seguir simultaneamente para diversos órgãos, otimizando o serviço.
O problema é que os cursos de noções de arquivologia atuais aplicados ao mundo do trabalho continuam presos à década de 1980. Naquela época fazia todo o sentido uma tabela de temporalidade, mas no século XXI as estantes móveis que eu me esforçava para movimentar na Polícia Federal cabem num pen drive de 8Gb na palma da mão – com a vantagem da pesquisa por tags! Enquanto o senso comum deu o seu jeito para aprender a armazenar conteúdo em celulares e notebooks, ainda não temos um padrão para lidar com arquivamento institucional de documentação digital e digitalizada.
Esse é um bom desafio para os arquivistas. Não sei até que ponto cursos de graduação em arquivologia estudam o arquivamento digital, mas seria ótimo que conversassem sobre parâmetros para essa tarefa. A dificuldade maior certamente é que cada sistema de gerenciamento de informação tem uma lógica própria de funcionamento, mas não tardará para que esses sistemas comecem a conversar entre si. E que o know how do arquivamento digital diário das pessoas em várias plataformas em algum momento converse com o arquivamento institucional dos setores público e privado. Em suma: senso comum e ciência não são inimigos.