
Não é de hoje que pessoas negras são vistas com desconfiança por seguranças de supermercados. Infelizmente, o caso da morte de João Alberto Silveira Freitas (40), o Beto, no Carrefour de Porto Alegre não é o primeiro e está longe de ser o último. Interessante notar que a mesma rede de supermercados esteve envolvida na morte de um cachorro em 2019, mesmo ano em que um jovem negro foi morto, também asfixiado, no supermercado Extra.
A violência institucional dos grandes varejistas, quando não é contra animais como o finado cachorro Manchinha, tem direção objetiva: pessoas negras. Experimente colocar na internet fotos ou vídeos de pessoas brancas de terno sendo agredidas em mercados. Achou? Você se lembra de alguma vez ver uma pessoa branca ser abordada em uma loja e agredida até a morte? Você que acha que no Brasil todo mundo é negro, miscigenado, já viu algum agente de segurança pedir para um ruivo encostar e colocar a mão na parede enquanto uma arma é apontada para a cabeça dele?
Dos dois seguranças do CARREFOUR que mataram Beto, um era PM “temporário”, seja lá o que isso for. A Brigada Militar, PM do Rio Grande do Sul, lançou nota dizendo que o PM não estava em horário de serviço e que era habilitado a fazer somente serviços administrativos e vigilância penitenciária. Ora, não é segredo que vários policiais pelo Brasil fazem bicos para conseguir manter as contas. Saem, pois, de uma rotina estressante e por vezes, emendam em serviços de segurança informais onde “ganha” o empregador por não constituir vínculo empregatício e o empregado por complementar a renda em casa. Justifica? Óbvio que não e querer ir por esse caminho é legitimar a ação racista cometida pelos seguranças do CARREFOUR, mas é apenas mais um elemento da cultura brasileira, a despreocupação com as consequências advindas da precarização do trabalho. Essa precarização é mantida e incentivada por vários grupos de hipermercados e, não sei se já disse nesse texto, o CARREFOUR é um deles.
Façamos um paralelo com a história da América e nosso histórico de colonização.
A Ku Klux Klan (KKK), movimento de extrema-direita surgido nos EUA no século XIX, voltou a aparecer em atos antidemocráticos no século XXI. Por incrível que pareça há seguidores desta seita no Brasil, especialmente na região sul. São eles que vibram quando acontece uma morte como a de Beto no Carrefour de Porto Alegre. Quando um presidente como Bolsonaro relativiza a morte de negros, são eles que aparecem inclusive se candidatando, como o pai da governadora interina de Santa Catarina, um nazista assumido que tem uma suástica desenhada ao fundo de sua piscina. Quando o Ministério Público aplica multas simplórias e não obriga a formação em direitos humanos nas empresas de segurança, hipermercados sentem-se à vontade para continuar com a contratação precária de capitães do mato disfarçados de “prevenção de perdas”. Quando a imprensa omite o nome do CARREFOUR ou do EXTRA em matérias sobre morte de negros por jagunços ou funcionários falecidos e escondidos por guarda-chuvas, outros seguranças são incentivados a agirem para defender um patrão que nem conhecem, mas que lhes paga em dia pela higienização social do estabelecimento. É o caso do CARREFOUR? Sim, é sim o caso do CARREFOUR.
Nos EUA, a morte do negro George Floyd em maio de 2020 em Mineápolis causou protestos por todo o país, tendo inclusive reflexão direta na eleição de Joe Biden por causa da alta votação de negros que historicamente não votavam – lá o voto não é obrigatório. A imprensa conservadora, dentre elas a Fox News, mostrava os atos dia e noite como ações de vândalos. Em vão! Por semanas, os atos cresceram e para além de reivindicar a punição dos policiais assassinos de Floyd, exigiram mudanças estruturais. A proibição de técnicas de imobilização com o joelho nas costas pela polícia local, como fizeram com Floyd nos EUA, como fizeram com Beto no Brasil, é apenas um dos ganhos desse processo de mobilização da população negra naquele país. A eleição da primeira mulher vice-presidente negra, Kamala Harris, bem como de candidatos(as) negros(as) e outras minorias como pessoas transgênero, bem como mandatos socialistas, são espólios do #BlackLivesMatter pelas ruas incendiadas. Entre o fogo da KKK e dos protestos da população negra, venceu esse último.
E no Brasil? Vamos nos limitar ao boicote ao Carrefour ou o caso da morte de Beto na véspera do Dia da Consciência Negra abrirá nossos olhos para o racismo institucional do poder Judiciário com as multas pra inglês ver, dos eufemismos de uma imprensa canalha, da concentração de recursos de campanha dos partidos políticos em candidatos homens brancos, das políticas públicas do poder executivo voltadas para os bairros com menor concentração de negros(as), do Legislativo formado por militares, pastores, ruralistas e empresários, quase todos homens brancos com repulsa à qualquer política de ação afirmativa? Já passou da hora de #VidasNegrasImportam ser mais do que uma hash tag ou a ação isolada de black blocks para se tornar uma ação direta da sociedade brasileira. Que a morte de Beto seja o estopim para o nosso levante contra o racismo estrutural.