Fotos: Araquém Alcântara. Clique nas fotos para ampliá-las.
A incompetência de Jair Bolsonaro não é surpresa para ninguém. Porém, ao acostumar-se a 28 anos de vida parlamentar de deputado, enriquecendo e gastando recurso do auxílio moradia para (sic) comer gente, ficou mal acostumado e não percebe que um presidente eleito, ainda que não empossado, é uma instituição e não um terrorista que coloca bomba em empresas públicas para chantagear o poder público à aumentar o próprio salário. Quando não dormia nas sessões, Bolsonaro passava vergonha em audiências públicas em que não sabia o que falar e, por esta razão, restaram-lhe os gritos e o que é inerente à sua figura: homofobia, misoginia, racismo e inúmeras manifestações de intolerância. Contudo, Bolsonaro tem que entender que sua fala tem consequências maiores do que ações no Supremo Tribunal Federal.
Em menos de três semanas de eleito e ainda sem assumir a presidência, Bolsonaro coleciona trapalhadas na política externa: a) cisão com o mundo árabe ao informar que irá transferir a embaixada brasileira para Jerusalém, fazendo o Egito cancelar reunião de negócios de investidores do Oriente Médio com empresários brasileiros e o ministro de relações exteriores Aloysio Nunes; b) estranhamento com a China, uma das maiores compradoras do Brasil, ao criticar o Partido Comunista do país e elogiar a política comercial de Trump, dizendo que é um modelo para o país; c) afastamento do ambiente de negócios com a América Latina, incluindo o Mercosul, causando uma fissura em uma relação comercial de duas décadas; d) Ataque à Noruega, dizendo que uma das principais investidoras em políticas contra desmatamento da Amazônia tem muito a aprender com o Brasil nessa área; e) escolha de Ernesto Araújo para o Ministério das Relações Exteriores, que se diz contra o globalismo e é próximo da política autoritária de Trump. O fim do Programa Mais Médicos, certamente, é a pior medida tomada por um presidente que sequer foi empossado e por conta dos milhões de atendimentos nos maiores rincões do país faz o pior inimigo de Bolsonaro torcer para que ele resolva rapidamente a situação, o que significa torcer para o governo dar certo.
Para que sua leitura desse texto seja melhor aproveitada, peço que primeiramente se desarme. Por mais que o texto seja escrita numa perspectiva de esquerda, há consensos que podem ser tirados tanto da causa quanto da consequência desta medida de Bolsonaro. O consenso sobre a causa é que os médicos cubanos não vão embora por uma questão financeira, de quebra do Estado brasileiro por não conseguir pagá-los. Falaremos sobre a causa mais tarde. O consenso sobre a consequência é que, segundo dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), cerca de 30% dos atendimentos em 1.575 cidades, sobretudo os que tem menos de 20.000 habitantes, ficará completamente prejudicado. Em mais de 1.000 municípios só há médicos cubanos! Sabemos que a maior parte dos médicos brasileiros jamais trabalhará para o SUS, seja qual for a proposta salarial e de condições de trabalho que o Estado oferecer.
Logo, sendo qual for a sua orientação ideológica ou opinião sobre Cuba, o responsável direto pela falta de atendimento dos locais mais pobres do país em que cubanos atendiam é Bolsonaro, por sua posição política atrasada sobre Cuba que mais cedo ou mais tarde seria refém de sua desastrada política externa. O que decorrer dessa atitude, do agravo à dor de garganta à morte de fetos não por aborto mas por falta de acompanhamento de médicos cubanos, é ele, o mito, quem deve ser responsabilizado. Em tempo: o nome do programa é Mais Médicos e não Médicos Cubanos. Se a maior parte dos médicos são cubanos, então certamente te enganaram muito sobre aquele seu jargão “vai pra Cuba”. Lembre-se que nem todo brasileiro tem condições de pagar por um plano de saúde que age com lobby no Congresso Nacional e elege os pastores, militares e ruralistas que legislam contra a população.
Revalida, ou seja, valida novamente
Até pouco tempo quem fazia a revalidação do diploma de médicos estrangeiros eram as universidades federais. Em 2006, quando era estudante da Universidade de Brasília (UnB), fui integrante da Câmara de Graduação, que fazia esse papel de revalidação dos diplomas. Era latente o corporativismo dos professores de medicina nestas câmaras, que inclusive tinham uma participação esmagadora de docentes de todas as áreas e um número irrisório de estudantes, servidores técnico-administrativos e integrantes da sociedade civil.
O Revalida é um exame novo que objetiva avaliar a qualidade da formação de médicos formados fora do país. Ocorre que não são somente médicos formados em Cuba que não passam no Revalida, mas também os formados em universidades européias e americanas. Aliás: proporcionalmente, os resultados são análogos ao compararmos a revalidação de diplomas de Cuba, Europa e Estados Unidos. Como em Cuba a especialidade é em medicina da família e no atendimento primário – daí inclusive os ótimos níveis de saúde na população cubana –, os participantes do Revalida sofrem ao perceberem testes centrados na medicação e no modelo mercadológico de consultas/exames, fruto da imposição dos planos de saúde à esta política social, via CFM (Conselho Federal de Medicina) e CNE (Conselho Nacional de Educação) através das diretrizes curriculares do curso de medicina.
Isto não quer dizer que a formação em medicina no Brasil seja ruim. O que se coloca é que a grande parte dos brasileiros que têm problemas de saúde (alguns levando à morte) não é porque tenham câncer ou alguma bactéria desconhecida, mas por conta de gravidez sem pré-natal, esquistossomose, vermes adquiridos por falta de saneamento básico ou sanitização de alimentos, sexo inseguro, compartilhamento de seringas por uso indevido de drogas, depressão etc. Adivinha quem atuava nessas áreas e foi o responsável por reduzir drasticamente os números do caos na saúde pública do país? Aqueles que o Bolsonaro mandou pra Cuba!
Ser médico da família não é ser menos importante do que um neurocirurgião. Médicos da família salvam inúmeras vidas. Adiante, Cuba não é uma formadora de médicos de segunda categoria. Foi Cuba o primeiro país a extinguir a transmissão de HIV de mãe para filho. Outras conquistas de Cuba que pego emprestado das publicações da colega Anjuli Tostes, auditora da Controladoria Geral da União (CGU) sobre o tema:
- Medicamentos custam 40 vezes menos que no Brasil;
- Desde 1990 trouxe 25.000 crianças que foram afetadas por irradiação no acidente de Chernobyl para serem tratadas em Havana, sem que elas paguem por isso;
- Todos estudantes de medicina, inclusive de outros países como os Estados Unidos, estudam sem pagar mensalidade na ELAM (Escola Latino Americana de Medicina);
- Mortalidade infantil de 4 por 1.000 e expectativa de vida de 79 anos, ambas melhores do que nos EUA;
- Mutirões de médicos cubanos fazendo operação de catarata em diversas partes do mundo, principalmente na África, sem cobrança aos usuários;
- Programas análogos ao Mais Médicos funcionando em parceria com mais 66 países do mundo, mesmo na Europa, o que significa que de cada 3 países do globo, em um deles há médicos cubanos salvando vidas.
Como “não existe almoço grátis”, uma máxima que os liberais insistem em repetir, é claro que toda essa expertise em saúde, da atenção primária à medicina de ponta, custa caro. Quem financia? Os próprios médicos que lá estudam, tornam-se servidores do Estado e retornam o investimento estatal em sua formação para Cuba. Porém, é uma verba ínfima perto do que o governo cubano coopta por outras formas, incluindo o comércio com outras nações.
Salário dos médicos cubanos
Cuba já existia antes do Mais Médicos. Nunca precisou desse programa para sobreviver, para “financiar sua ditadura”. Aliás: Cuba viveu por mais de meio século com embargo econômico dos EUA que se estendeu aos países que se curvaram à Doutrina Truman, como a ditadura militar brasileira. O Programa Mais Médicos (PMM) é apenas um dos investidores na política de saúde de Cuba, que não é só para a ilha e sim para o mundo como mostrado neste texto. O convênio estabelece que o Brasil paga a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS) que repassa o dinheiro ao governo cubano que, por sua vez, retém 70% e paga 30% aos médicos.
Mas então por quê Cuba fica com a maior parte dos salários dos médicos cubanos?
Bem, imagine que você é o chefe de Estado (ditador ou eleito em urnas eletrônicas com fraude, como ocorria no Brasil até a eleição de Bolsonaro) de uma ilha minúscula que faz oposição política à maior máquina de guerra do mundo. Das sete horas da manhã às cinco da tarde, não há crianças pedindo esmola ou sendo prostituídas nas ruas do país: estão todas na escola e todas têm onde morar. Com todas as dificuldades do pouco espaço territorial e com um embargo de 50 anos, vendendo banana, charutos, boxeadores e jogadores de beisebol, pra ser bem performático, você consegue manter não somente uma educação de qualidade como uma saúde em que qualquer operação, da fimose à separação de siameses, é garantida de forma rápida e eficiente pelo sistema público de saúde. Por qual razão deve-se deixar que os egressos de medicina sigam livres para clinicar em algum lugar no mundo sem que haja o retorno do tanto que o povo cubano, arduamente, gastou para a formação dessas pessoas?
Se você acha que esta é uma medida comunista, saiba que situação parecida ocorre com servidores efetivos que solicitam afastamento para estudos no Brasil, exigindo que aqueles que forem afastados “terão que permanecer no exercício de suas funções após o seu retorno por um período igual ao do afastamento” (Lei n. 8.112/1990, Seção IV, Art. 96). Nada mais natural do que cobrar de um servidor que solicitou afastamento com remuneração para estudos e continuou a receber salário que pague o Estado caso não permaneça no setor público pelo mesmo período em que ficou afastado. É este princípio de solidariedade entre Estado e população assistida na educação superior que a classe média brasileira, acostumada a saquear a nação oferecendo baixa produtividade em troca, insiste em (não querer) entender.
Já que os eleitores de Bolsonaro se importam tanto com o salário dos médicos cubanos, clique aqui para ver os concursos para médico no Brasil no ano de 2018. Vários processos foram prorrogados ou reabertos. Ainda há os que não conseguiram preencher a vaga. Além disso, vamos acabar com essas clínicas comunistas que cobram 100 reais pela consulta e repassam somente 30 reais para os médicos, ou é implicância com Cuba e essas clínicas estão corretas na forma como agem? Mas fiquem tranquilos que antes do final do mês o Bolsonaro resolverá o problema de médicos que o país não solucionou em décadas. Aaahhhhh o mito!
Solidariedade e financiamento do Estado
O que estranha os brasileiros quando Cuba retém parte do salário dos médicos cubanos é, sem dúvida alguma, um desdobramento da falta de consciência política da população. É o mesmo pensamento que faz uma professora ser contra o Programa Bolsa Família (PBF), sem compreender que o auxílio proporcionado pelo programa tem ação direta na alimentação, participação na escola e frequência ao posto de saúde, ou seja, ofertando mínimos sociais e visando, dentre outras coisas, melhoria no aprendizado. O PBF é um financiamento solidário com distribuição direta de renda aos mais pobres e por isso atacado pela classe média que não se contenta em não abocanhar uma parte maior do orçamento.
Para a maior parte dos brasileiros, um médico e até mesmo outros profissionais com formação em nível superior são considerados doutores, fruto do seu esforço, de seu estudo. Não compreendem que para a maior parte da classe média, fazer uma faculdade não passa de um desdobramento do ensino médio, de uma boa educação com investimentos vultuosos em capital cultural como cursos de línguas e pré-vestibular, passando pela natação, judô e dentista semestralmente – além de não terem que trabalhar e estudar. Ao fazer o curso de medicina em universidades públicas, os universitários têm reforçada a visão meritocrática alimentada pela família, mídia e círculos sociais, jurando que os milhares que deixaram para trás os fazem bons. Pior: afirmam não ter dívida com os miseráveis do país que bancaram sua formação, da compra da cachaça ao pagamento da conta de luz e até do gatonet!
Certo é que embora seja visto como um espaço hegemônico da esquerda, as universidades concentram o que existe de mais sofisticado no pós-modernismo “nem nem” (nem direita, nem esquerda): defendem a privatização, pois vêm de uma educação básica realizada completamente em escolas particulares, mas não pagaram um centavo em sua formação e nem querem pagar, em forma de serviços, após formados. Iniciativas governamentais já foram feitas neste sentido, exigindo que bolsistas de Licenciatura de faculdades particulares permaneçam um tempo, após formados, lecionando em escolas públicas. O princípio de restituição é o mesmo.
Deixo claro que não quero com isso defender a cobrança de mensalidade em universidades públicas, mas o episódio do Mais Médicos deixa evidente a fábrica de playboys sangue-sugas em que se transformaram as universidades públicas. Claro que é uma generalização e conheço médicos que fazem um excelente trabalho no SUS e nem pensam em clinicar para planos de saúde, mas vale a reflexão. O perfil de universitários de instituições públicas mudou, em parte, com estudantes de classes populares que começaram a frequentar os cursos de medicina após cotas sociais e raciais, além da expansão do número de vagas pós 2007 com o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Públicas Federais (REUNI), parte integrante do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) do segundo mandato do governo Lula – verdade seja dita, em muitos locais, a expansão se deu de forma precarizada.
Entretanto, por mais que tenha havido uma mudança no perfil do universitário de medicina no Brasil, com mais negros, pobres e egressos de escolas públicas no ensino superior público e privado, nada se compara à formação humanista da ELAM. Além de estudarem medicina, os universitários cubanos têm aulas sobre a importância da integração latino-americana, de uma medicina da família que aproxime os usuários do profissional. Não é um curso que faça dos usuários eternos clientes dos fármacos de laboratórios que pagam as viagens de verão dos médicos, um ouvinte disciplinado do “é virose” com uma receita repetitiva. Vejamos o exemplo do direito, outro curso elitista e que ainda mantém imbecilidades como as expressões em latim. O Direito tem egressos que aceitam trabalhar no interior do país por propostas bem menos vantajosas do que as oferecidas para profissionais de medicina. É verdade que muitos dos instrumentos para a atuação de profissionais do direito estão disponibilizados na internet. Do pouco de material físico com que trabalha um procurador, um defensor público, nada se compara à simples materiais de sutura em uma unidade básica de saúde. Porém, a visão de fortalecimento de Estado, ainda que a graduação pregue “captar grandes clientes para trazer dinheiro pro escritório”, permite com que a situação de profissionais de direito no interior do país não seja tão caótica quanto a dos médicos. Mas não é só: pensar o país, seus problemas e soluções, na saúde, educação, justiça social, seguridade, é algo pela qual os estudantes de Direito passam, mas não os de Medicina.
As famílias dos médicos cubanos
Bolsonaro afirmou que vai conceder asilo aos médicos que quiserem permanecer no país. Vejamos quantos serão os médicos, dos 8.300 restantes do programa (45% de um total de 18,3 mil) que aceitarão a proposta. Será que deixarão de viver na perigosa Cuba comunista comedora de criancinhas para morar num país que sequer os reconhece como profissionais? Está na hora de quebrar um paradigma histórico que Bolsoetornaro sempre incentivou, o de que cubanos são reféns em seu país. O retorno à Cuba será com a sensação de dever cumprido e por isso rejeitarão qualquer asilo, até porque ninguém coage suas famílias. Restarão os ingratos que em muitos lugares do mundo não conseguiriam concluir o Ensino Fundamental, mas ficarão no Brasil falando mal do país que investiu em toda a sua educação, da creche à pós-graduação.
Dizer que as famílias de médicos cubanos não podem vir ao país é mentira! Na internet já há inúmeros depoimentos de pessoas do interior do país que afirmaram que conheceram familiares dos médicos cubanos, confraternizaram com eles e até fizeram amizade prometendo um dia também visitá-los, o que não é permitido não por proibição de Cuba mas por falta de recursos financeiros do povo brasileiro. Esta é uma mentira que não dura nem até o edital relâmpago que o Ministério da Saúde vai lançar em breve, almejando, mais uma vez, preencher vagas de médicos para atuarem no interior, em regiões em que o transporte é a hidrovia porque helicóptero não chega. Daí surge a segunda dúvida: a classe média não entende por que as famílias destes profissionais, mesmo vindo ao Brasil, retornam para casa. Em Cuba a medicina não é uma profissão liberal, ou seja, não existem aqueles caras que ficam nos centros urbanos com placas no corpo com anúncios que vão de habilitação para carteira de motorista à venda de aliança de ouro, passando pelo famoso atestado médico com eufemismo de “exame admissional”.
Se você precisar de um médico em Cuba, ele irá ao seu hotel e lhe dará todo o tratamento que precisa sem cobrar um centavo por isto. Não é a toa que moradores de cidades dos EUA descapitalizadas após a crise de 2008, como Detroit, procuram Cuba para se tratar. Bombeiros que ficaram com problemas respiratórios após salvarem a vida de milhares de americanos nos atentados de 2001 contra o World Trade Center também se tratam em Cuba, pois a seguridade social americana, pior que o modelo bismarckiano, não lhes garante acesso sequer à nebulizadores – o filme Sicko, de Michael Moore, disponível na Netflix, mostra bem isso.
Dito isso, fica evidente por que as famílias dos médicos cubanos não querem vir para o Brasil. Os brasileiros sabem bem que um salário de 11 mil reais, embora os coloque no grupo dos 10% mais ricos do país, é insuficiente para manter uma saúde e educação de qualidade como eles têm em Cuba, por mais que o modelo de seguridade social beveridgiana do SUS garanta a gratuidade do atendimento e as matrículas no ensino fundamental estejam quase universalizadas. Quem irá trocar a educação de Cuba, com escolas equipadas e professores qualificados, pelas quatro horas adicionais de almoço e origami (quando tem papel) que as escolas brasileiras chamam de educação integral?
Então você pensa: “por que é que eu vejo na TV cubanos fugindo da ilha e não o contrário, americanos chegando em Cuba?”. Perceba que se você for em Cuba, o único cuidado que deve ter é o mesmo para quando for à praia de Boa Viagem em Recife: tubarões. Fique tranquilo que ao menos que apareça um helicóptero da CNN no ar, nenhum fusquinha anfíbio abarrotado de gente vai passar por você na praia. Não é de agora que a mídia internacional, pelos interesses mais diversos possíveis – mas sempre envolvendo dinheiro – atacam Cuba. Meios de comunicação como Globo, Folha de São Paulo, revista Veja são apenas alguns dos veículos que embora os “caixa2deBolsonaro” achem comunistas, sempre fizeram o papel de atacar a esquerda de forma rasteira e mentirosa. Vão chorar lágrimas de sangue ao ver o povo brasileiro sofrer sem atendimento médico.
A exposição do Conselho Federal de Medicina
O ano de 2013 marcou uma série de manifestações por justiça social e combate à corrupção, com milhares de pessoas nas ruas do Brasil e até no exterior. O PT temia pela eleição que se aproximava e fuga de investimentos nos mega eventos da Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016). Quando pressionada por melhoras no país, com destaque para áreas como a saúde, Dilma Roussef anunciou o Programa Mais Médicos. Não demorou para o Conselho Federal de Medicina (CFM) rejeitar a proposta, patrocinando ações intolerantes como escrachos na chegada dos médicos cubanos nos aeroportos.
No dia 14/11/2018, assim que ficou confirmada a decisão de Bolsonaro pela saída dos médicos cubanos, o CFM lançou uma nota (clique aqui para ler) informando que o Brasil tem médicos suficientes para atender o país. Evidente: após o fracasso da campanha contra os médicos cubanos em 2013, por sobrevivência e coerência política, o CFM deveria seguir a mesma linha e publicar um texto do tipo “já vai tarde”, como que querendo reconfortar a população brasileira que o atendimento permanecerá sem baixas. Com isso o CFM perdeu uma ótima oportunidade de permanecer em silêncio ou reconhecer que o Mais Médicos foi um diferencial que ajudou e muito a saúde brasileira.
O CFM sabia que a entrada do Brasil no Mais Médicos era um caminho sem volta, pois instituído o programa e aumentado o número de intercambistas, ao saírem por uma briga com governo posterior, como é o caso agora, deixaria exposta a classe médica por não assumirem os papeis que os médicos cubanos assumem: pegar uma canoa e remar horas para atender um idoso ribeirinho com osteoporose que tropeçou e quebrou a perna. Para quem não sabe, o Mais Médicos não é um convênio com Cuba e sim um programa aberto a qualquer profissional formado em medicina, incluindo brasileiros. Para quem não lembra, quando instituído em 2013, o programa ofertou a possibilidade dos médicos brasileiros trabalharem com salário integral, levando suas famílias para onde quiserem e (obviamente) sem fazer o Revalida. Se os médicos brasileiros não aceitaram na conjuntura econômica de 2013, não é na crise de agora que correrão para o programa.
O fato é que agora o CFM está preocupado e pressionando Bolsonaro para uma rápida solução, pois corporativistas como são sabem bem que as vagas não serão preenchidas, ainda mais por um governo que tem Paulo Guedes que preza por salários baixos e corte de direitos trabalhistas. Por isso, se apressaram ao afirmar na nota que:
3) Cabe ao Governo – nos diferentes níveis de gestão – oferecer aos médicos brasileiros condições adequadas para atender a população, ou seja, infraestrutura de trabalho, apoio de equipe multidisciplinar, acesso a exames e a uma rede de referência para encaminhamento de casos mais graves;
Ora, condições de trabalho é o que deve ser dado a qualquer trabalhador e não somente aos médicos. Se o policial não tem viatura e o professor não tem quadro, é claro que o trabalho fica prejudicado. Falando em uma perspectiva moralista e conservadora, para vermos a posição do CFM com o mesmo olhar que alguns médicos observam a nota: se a falta de gaze e bisturi mata o paciente na maca, a falta da viatura não permite que o policial chegue a tempo na denúncia de agressão domiciliar e a falta de quadro mata toda uma geração que não aprende a ler nem o mundo, nem as letras e outros códigos. Outra reflexão que deve ser feita: profissionais de saúde como técnicos de enfermagem, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais etc não tem um programa específico para si, do tipo “Mais Enfermeiros” ou “Mais Assistentes Sociais”. Por que será?
Braço forte, mão amiga!
O Brasil acabou de eleger um presidente militar reserva da reserva dos reservas. Com forte apelo aos militares, não tanto porque gosta deles e mais pelo que recebe da Taurus para promover o armamento civil, Bolsonaro jogou antecipadamente boa parte de seus eleitores contra um governo que nem começou. Sobrará para as forças armadas salvar a imagem de um “militar no poder”. Acontece que a grande massa de mão-de-obra verde oliva não é qualificada para substituir os médicos cubanos. São jovens, grande parte sem concluir o ensino médio, que entraram para as forças armadas para conseguir um soldo e ranchar (comer) no quartel. São aqueles caras que o ditado diz “pau pra toda obra”, da campanha contra a dengue e vacinação de cães, aqueles que pagam 10 flexões sem mexer o pescoço como um professor de aerobahia.
Conheci excelentes praças e oficiais do exército quando participei como estudante em uma operação do Projeto Rondon em Camamu, interior da Bahia, em 2007. Em 2011 e 2012, enquanto mestrando/professor da disciplina do Núcleo do Projeto Rondo da UnB que preparava os graduandos para as operações do Ministério da Defesa e ações próprias da universidade, me aproximei mais dos militares e vi a importância e profundidade de seu trabalho. A pergunta é: o quanto esses jovens militares, que têm suas famílias no interior do país ou nas periferias dos grandes centros urbanos sendo atendidas por médicos cubanos, estão dispostos a colaborar efetivamente com um governo que nem assumiu e já pode ser o responsável direto pela morte de seus familiares?
O que vai acontecer é que o núcleo militar ligado à Bolsonaro, com a interlocução do General Heleno no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), vai deslocar seu quadro de oficiais médicos para os locais deixados pelos médicos cubanos. Pois bem, ocorre que os médicos das forças armadas já atuam em municípios sem cobertura mínima do SUS, mas são ações pontuais e quase sempre em cidades distintas daquelas em que o Mais Médicos enviou profissionais. Entre um militar e um civil médicos, é obrigação deste último o atendimento à população nas demandas da saúde, sendo o militar médico para atender a demanda própria das forças armadas. Se não é este o entendimento, então o Estado brasileiro paga, desnecessariamente e há muito tempo, os militares médicos para não trabalharem, pois se podem ser deslocados para substituir os médicos cubanos é a prova de que não são necessários nos quarteis ou hospitais militares.
O número de militares médicos é muito pequeno. Além de perder a cobertura médica para os militares do quartel e em hospitais das forças armadas, a utilização deles não faz cócegas na carência do número de profissionais cubanos que deixará o país. Ainda que tenham médicos cubanos que queiram ficar no Brasil – e agora que viu a bagunça que fez Bolsonaro não falará mais em Revalida para os cubanos, mas somente para a imprensa para manter a aparência –, o estrago já está feito. O grito de guerra do exército brasileiro só vai servir para ser contado em uma segunda história do Brasil em que os militares perderam uma ótima oportunidade de se manter longe do executivo federal quando este é ocupado por um populista inconsequente, desinformado e intolerante, nada diferente do que foi nos últimos 28 anos enquanto era deputado, mas com consequências muito maiores pra nação.