
BRASÍLIA, DF, 05.04.2017: CONGRESSO-CULTO – Bancada evangélica realiza culto evangélico na Câmara dos Deputados em Brasília. (Foto: Anna Virginia Balloussier/Folhapress)
Não causa estranheza, embora revolte bastante, a decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho em relação à ação movida pela psicóloga Rozângela Alves Justino. O país vive uma onda conservadora que ultrapassou o debate da direita versus esquerda, caminhando para o que há de pior em qualquer modo de produção no mundo. O debate ganhou as redes sociais novamente com o tema da cura gay e, enquanto há os que acham que o juiz não se manifestou a favor das terapias de reversão sexual, há os que consideram que ele legalizou a prática no país.
Para compreender melhor a polêmica que envolve o CFP (Conselho Federal de Psicologia), segue trecho da Ata da Audiência:
“Sendo assim, defiro, em parte, a liminar requerida para, sem suspender os efeitos da Resolução nº 001/1990, determinar ao Conselho Federal de psicologia que não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do C.F.P., em razão do disposto no art. 5º. inciso IX, da Constituição de 1988”.
Psicologia cristã
Não é correto escrever sobre este caso sem que se saiba quem é a proponente da ação. Aliás, esse é um dos aspectos mais importantes nesse debate. Rozângela possui cargo no gabinete do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), que está no primeiro mandato e é apadrinhado político de Silas Malafaia, líder da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo.
Bem, parece que se parássemos por aqui já teríamos elementos suficientes para saber que estamos a lidar com a nata da ignorância brasileira, mas vamos além: Rozângela perdeu o registro de psicóloga em 2009 por promover terapias de reversão sexual para curar homossexualidade masculina e feminina. A justificativa para essas ações era a de que “pessoas abusadas na infância ou adolescência e que sentiram prazer nessas relações, tornavam-se homossexuais”.
Ainda à época em que foi repreendida pelo CFP, Rozângela afirmou que sente-se orientada por Deus para ajudar as pessoas que estão homossexuais. Em resumo: Rozângela considera-se uma representante divina e agora tem o aval da justiça para continuar sua saga contra o público LGBT. A psicóloga ainda soltou a pérola de que “o movimento pró-homossexualismo tem feito alianças com conselhos de psicologia e quer implantar a ditadura gay no país”. Então é isso: uma cruzada do gayzismo e CFP contra o exército de Deus!
Ato jurídico: ter poder não é ter conhecimento
O fato de Rozângela ser uma testa de ferro de Silas Malafaia e ter entrado na 14ª Vara do Distrito Federal suscita dúvidas se de fato já não sabia qual seria a decisão do juiz Waldemar. Malafaia também é psicólogo, muito articulado politicamente e ele próprio se envolveu em caso de cura gay recentemente, sendo desautorizado pelo CFP. Dificilmente daria um tiro no escuro ao entrar com um processo na justiça e correr o risco de uma derrota.
Waldemar, por sua vez, se não agiu de má fé, demonstra ignorância e desrespeito em relação aos profissionais de psicologia. A resolução CFP n. 1/1999 afirma, dentre outros aspectos importantes, que:
Art. 2° – Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.
Isto significa que qualquer psicólogo que insiste em dizer que a homossexualidade é doença, perversão, desordem psíquica ou afins, incorre em transgressão à norma do CFP, podendo ser punido de acordo com o código de ética profissional da categoria. A resolução vai além:
Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Este foi um ponto bastante debatido nas redes sociais. Afinal: se alguém solicitar ao psicólogo uma (re)orientação sexual, para utilizar a mesma expressão do juiz Waldemar, o psicólogo que também deseja fazê-lo tem competência para isso? Segundo o juiz a resposta é afirmativa para esta pergunta. O juiz Waldemar utiliza um engodo em sua linguagens, típica de juristas, chegando inclusive a afirmar que homossexualidade não é crime. Balela! O que importa de sua decisão é a permissão dada à psicólogos que queiram realizar a chamada cura gay. Se o juiz passasse 99 páginas fazendo a defesa de que homossexualidade não é doença e, ao final, desse causa ganha à Rozângela, o resultado seria o mesmo: a legalização da cura gay não mais pelos fanáticos neopentecostais, mas pela ciência.
Alguns dizem que a opinião do juiz é contraditória. Contudo, o que ele fez não passa de um deboche para no final dar uma canetada e dizer que, a partir dali, são válidas as terapias de reversão sexual. Para fundamentar sua decisão, o juiz utiliza-se do Art. 5º, IX da CF/1988, que diz:
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Ao confundir liberdade com libertinagem, o juiz retira a autonomia do CFP e todo o acúmulo de pesquisas do conselho e de organismos internacionais para permitir a ação covarde de Rozângela e de todo o bonde de corruptos neopentecostais que vibraram com a decisão de Waldemar. Tal como nos três casos de juízes que bloquearam o Whats App por não ter as informações solicitadas do aplicativo, o magistrado se coloca acima do bem e do mal para decidir um ponto vencido há tempos pela comunidade científica.
Falando nisso, Waldemar reforça o preconceito à comunidade LGBT com a justificativa de “liberdade científica”. Esquece ele que não há nada mais contra a ciência do que a cura gay. A homossexualidade já deixou de ser lida como doença desde 1990. Até Sigmund Freud, pai da psicanálise, em 1935, escreveu que homossexualidade não é doença. Porém, para Waldemar o científico mesmo é a ação de uma beata preconceituosa e os gritos de “nós vamos pro pau” de Silas Malafaia. Tal qual a luta contra o Ato Médico há cerca de 7 anos, que fazia profissionais de saúde se dobrerem aos médicos, iniciaremos a luta contra o Ato Jurídico, que faz todos os profissionais, incluindo os médicos, se dobrarem frente aos juízes.
E se o juiz Waldemar julgasse processos semelhantes de outras profissões?
Imaginemos as seguintes situações:
- Uma assistente social que trabalha com o Marco Feliciano e que considera que a atuação profissional deve se pautar com base na fé e não no código e ética da profissão, iniciando o dia de trabalho com uma oração;
- Um médico que trabalha com Eduardo Cunha e diz que a homossexualidade deve-se à concentração de determinados tipos de células no esfíncter que, se inibidas, curam o paciente;
- Uma engenheira que trabalha com Marcelo Crivella e diz que para a construção de residências pelo programa Minha Casa, Minha Vida não é necessário seguir as normas técnicas de construção civil, alterando a quantidade de cimento por metro quadrado e economizando verba para a prefeitura;
- Um veterinário que trabalha com Antony Garotinho e afirma que a castração de animais em situação de rua é ato contra a vontade de Deus, pois estes nasceram livres como os homens e não podem ter sua natureza modificada; e
- Uma farmacêutica prima do bispo Ronaldo Fonseca e que trabalha numa farmácia de manipulação, misturando aos medicamentos uma espécie de óleo da prosperidade dado pelo seu pastor.
As cinco situações acima são qualquer coisa, menos ciência. Acredite: algumas delas são verdadeiras! Todas as profissões acima são qualquer coisa, menos ciência. Ainda que a maioria dos conselhos profissionais sejam ruins e atuem basicamente na reserva de mercado, certo é que todo profissional deve respeitar o que diz as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso (DCN), a Lei de Regulamentação da profissão e o Código de Ética da mesma.
Não é o juiz Waldemar quem tem que dizer que é uma questão de liberdade Rozângela poder atuar com a cura gay, mas sim o CFP que já repudia esta prática há décadas. Em tempo: não há proposta científica na ação de Rozângela. O que ela quer é uma autorização da justiça para aplicar uma roupagem científica à terapias de reversão sexual por via da igreja. De sobra, Rozângela e a Bancada da Bíblia ainda levam de presente a vitória numa queda de braço judicial com o movimento LGBT. Analisando mais profundamente, a bancada BBB (Bala, Bíbliae Boi), que já ocupa o Executivo e Legislativo, acaba de ocupar o Judiciário, dividindo o país em franquias.
A resolução do CFP não tem como objetivo punir Rozângela. Esta foi apenas a consequência da resolução, que antecede em 10 anos a punição da psicóloga. A resolução do CFP foi escrita no âmbito dos direitos humanos, de respeito à diversidade, à forma de ser e estar de cada pessoa, impedindo que ações proselitistas ataquem a dignidade de homossexuais. Este histórico foi ignorado pelo juiz Waldemar.
Quem gostou da decisão do juiz?
Se após ler este e outros textos você ainda considera a decisão do juiz correta e que ela não legaliza terapias de reversão sexual, saiba que o deputado Sóstenes Cavalcante não é o único “democrata” que comemorou a decisão do magistrado. Malafaia, Feliciano, Crivella e toda sorte de estelionatários que se escondem atrás do discurso da teologia da prosperidade acharam que a justiça agiu corretamente. Logo eles, que há anos lutam pela legalização da cura gay na justiça, acharam na 14ª Vara do DF a chance que precisavam para frear, ainda mais, os poucos avanços conquistados pela comunidade LGBT.
No mínimo, ainda que analisasse somente o Art. 5º, IX da CF/1988, o juiz deveria optar pela opção mais benigna dentre as duas resultantes da interpretação restrita da regra jurídica: a da garantia de direitos no país que mais mata homossexuais em todo mundo. Relativizar a decisão do juiz por conta da manobra literária que ele aplicou para silenciar o CFP é corroborar com o fundamentalismo. Por incompetência ou má fé, Waldemar trocou o martelo pela Folha Universal e decretou: ratio summa, cura gay.
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Razão superior. Dir Espírito de eqüidade que deve determinar a escolha da solução mais benigna, dentre as duas resultantes da interpretação estrita de determinada regra jurídica.