* Texto enviado ao lançamento do site www.10porhora.org
Então, enquanto houver armas, vão ter pessoas matando e morrendo. Enquanto não criarmos a cultura do respeito, de valorizar o próximo, entender que ele tem laços, relações, que ultrapassam desentendimentos pessoais ou outras pendências, vamos assistir à homicídios, seja na conquista de um tênis, na fuga de um assalto à banco ou numa chacina em escola.
Mais uma vez um caso que apavora o mundo: massacre em escola nos Estados Unidos. Essa prática vem se repetindo, ou seja, não foi a primeira vez e, infelizmente, parece não ser a última. Em cima disso pensei em escrever algo pedagógico e vivencial sobre o que é ter uma arma.
Uma pergunta fundamental que não fazemos é: pra quê serve uma arma, como um revólver? Na minha casa tem cama que uso para dormir. Tem talheres que eu uso pra comer. Tem geladeira, onde conservo alimentos. Tem ração pra alimentar meu cachorro. Tem um flutuador que joga cloro na piscina e ajuda a mantê-la limpa. Não tem cortador de grama, então peguei o do vizinho, pois grama tem em minha casa. Meu outro vizinho, o do lado esquerdo, tem ração pra gato, mas não peguei isso com ele, pois não tenho gato. Também não peguei fita cassete com um terceiro vizinho, do outro lado da rua, pois não tenho vídeo cassete em minha residência. Lá em casa tem até coisas que não uso, como dois volantes com marcha para jogos de automobilismo, e eu não tenho esse tipo de jogo no computador. Então pensei: o quê eu não tenho em casa que me seria útil? Já sei: acho que está faltando uma arma nessa casa! E foi assim que eu pensei em quais seriam as vantagens e desvantagens de se ter um revólver comigo. Fui numa lojinha de R$ 1,99 e comprei um revólver de plástico pra ir me acostumando com a ideia e fui fazer alguns testes. Seguem os resultados:
- Vou dormir em cima de um revólver? Não! Até tentei, mas só consegui por uma hora e fiquei com uma marca vermelha nas costas. Ainda bem que não tenho namorada pra não ser mal interpretado.
- Vou comer com um revólver? Não! Tentei sopa, churrasco, lasanha, batata frita. Quando ia desistir, tentei sorvete e banana. Nada deu certo. Foi um dia quase sem comer, só lambendo o que o revólver encostava.
- Vou conservar alimentos com um revólver? Não! Não cabia nem uma azeitona no tambor do revólver. Foi o máximo que pensei pra essa função.
- Vou alimentar meu cachorro com um revólver? Não! Ele até mordeu, mas largou em seguida e preferiu sua bolinha, que também é de plástico. Acho que o formato não agradou.
- Vou limpar a piscina com um revólver? Não! Joguei o revólver de plástico na piscina e o máximo que ele se assemelhou ao flutuador foi ficar boiando, mas limpar que é bom nada.
- Vou cortar a grama com um revólver? Não! O revólver amassou mas não cortou nada. A grama continuou alta.
- Vou alimentar o gato do vizinho com um revólver? Não! Se nem meu cachorro que morde até latinha não quis, logo gato, que é mais fresco do que tudo, não iria aceitar.
- Vou assistir filme com um revólver? Não! Apertei o gatilho umas dez vezes, coloquei contra a luz, virei, apertei o gatilho novamente, procurei enfiar na tomada, mas imagem que é bom nada.
- Vou me divertir com jogo de automobilismo, ou mesmo de tiro, com um revólver? Não! Não tinha entrada USB, mas se tivesse, se tivesse…
Diabo, mas que coisa! Será que revólver não servia pra nada? Será que vou ter que entrar em algum reality show e ganhar 1 milhão de reais e comprar um míssel Tomahawk pra que veja algo útil numa arma, se é que tem? Preferi preservar o público de mais um bate-boca vergonhoso e continuei pensando em alguma coisa que eu pudesse fazer com o diacho de um revólver. Pensei se seria útil pra trocar o pneu do carro, acessar a internet, ligar pros meus pais, escrever receita, lavar a louça, mas nada, absolutamente nada do que eu pensava em fazer com a arma me parecia funcional. Talvez a inutilidade seria porque era de plástico e não de verdade. Foi aí que tive a grande ideia: e se alguém viesse me roubar eu desse uns tiros no cabra? E se eu andasse com o revólver debaixo do banco do carro para poder brigar com mais segurança no trânsito? E se eu desse tiros para o alto numa festa para demonstrar toda a minha virilidade masculina enrustida atrás de comentários em redes sociais no mundo virtual?
Foi a partir daí que pensei, também, nas desvantagens, se é que essas próprias vantagens não podem ser consideradas como algo negativo.
Alguém que vem roubar sua casa certamente está mais preparado do que eu. Parando pra refletir, nem policial que tem treinamento, não saca o revólver da cintura todo dia. Por quê eu, que trabalho, estudo, tenho família, assisto futebol, faço festa, vou à festas, reclamo da vida, enalteço a vida, me diga, por quê eu iria saber utilizar uma arma melhor do que um assaltante que faz isso com regularidade? Você aí que me lê: já viu um médico construir ponte e um engenheiro fazer cirurgia cardiovascular? E olha que nem tenho criança em casa, o que seria um risco e preocupação a mais.
Para o trânsito é o mesmo raciocínio. Não preciso me proteger de ninguém, mas de mim! Se ando com uma arma em meu carro, o maior perigo sou eu mesmo, que terei que controlar minha raiva pra não disparar contra quem me deu uma fechada ou bateu em minha traseira. Isso é vantagem? É achar que o outro também tem arma e tenho que entrar nessa barbárie?
Quando vamos numa festa, se for do tipo americana, levamos o que vamos beber. Caso seja festa open bar, levamos o ingresso. Levamos amigos, um presente pro aniversariante, o amigo do amigo, um trocado pra “intera do cabô a cerva”. Se eu levasse uma arma, quais benefícios ela me traria? Já sei: rolou uma briga e eu posso resolver o problema, pois uma vez que estou armado, ninguém irá mexer comigo. Legal, se isso é vantagem, então por qual motivo todo mundo não vai pra festa armado? Imaginem só uma festa com 50 pessoas, o que é pouco, e de repente rola uma briga, e todo mundo está armado? Seria uma loucura cada um querendo resolver o problema tendo uma arma letal na cintura. Logo, não vi vantagem alguma nessa imbecilidade de andar armado.
Armas só servem para matar e alimentar a indústria armamentista. Embora a função da arma seja clara, que é atingir alguém, podemos inventar qualquer desculpa para se ter um objeto desse em casa, de acordo com a realidade de cada local. Exemplos: podemos ter arma porque é um direito e a constituição permite, porque é bonito, porque é para caçar. Sinceramente, eu prefiro a proibição pelos seguintes motivos: não se pode ter arma porque ela pode ser acessada por uma criança, porque serve para matar, para enriquecer a indústria bélica, porque não tem outra função senão acabar com a vida, porque é necessário treinamento pra operar uma arma, pois não é uma colher ou torneira.
Relatório da ONU diz que a diminuição do número de armas não tem relação direta com a redução do número de homicídios. Bom, pode até não ter, mas o certo é que não tendo arma, uma pessoa demoraria muito mais tempo para matar outra, sendo contida ou causando um estrago menor no número de pessoas. Se não é isso, experimente dar uma pistola pra cara cidadão no planeta e depois me conte, se você sobreviver – e eu também –, o que aconteceu.
Em 2005, o Brasil, através de referendo popular, votou no Artigo 35 do Estatuto do Desarmamento – e não na aprovação da íntegra do Estatuto, como acreditaram alguns. O povo brasileiro optou pela liberação da compra e posse do registro da arma na forma da lei. O Estatuto, que é a Lei 10.826/2003, permite que magistrados e membros do Ministério Público, auditores e analistas tributários, agentes penitenciários e guardas municipais e pessoas físicas que comprovem a efetiva necessidade de portar arma possam efetuar o registro na Polícia Federal. Ninguém nunca viu plantação de fuzil ou pistola em morro ou outro local. Arma vem de indústria, não é fabricada em casa, numa esquina qualquer. Aqui chegamos no segundo ponto da justificativa pra se ter uma arma: o lucro das empresas que as fazem!
Há empresas que além de vender pra civis, ainda vendem pro governo, pra que repasse aos militares. Com isso, garantem a circulação do capital: tem arma a polícia, os assaltantes e quem quer se proteger de alguma coisa, como uma batida de carro ou um empurrão numa festa, alimentando o patrimônio dos donos de indústria de armas e dando falsa noção de que está mais seguro. Para quem não sabe, a indústria bélica é a que mais lucra no mundo, sendo a responsável por grandes massacres civis. O cineasta estadunidense Michael Moore no filme Tiros em Columbine (2002) revela bem a ignorância dos estadunidenses em se ter uma arma e como o lobby armamentista é forte no Congresso daquele país. No Brasil não é diferente e se expressou na política, em 2005, na figura de Alberto Fraga, do Partido Democratas do DF (à época Partido da Frente Liberal, PFL), que presidiu a “Frente da Bala” para ganhar o posicionamento no plebiscito que votou a proibição da venda de armas e munição.
O caso é que ninguém perde nada com o desarmamento, a não ser quem quer acertar contas com outra pessoa ou grupo ou empresas belicistas. A movimentação de gasto com armas gira em torno de 1,5 trilhão de dólares ao ano, configurando a maior indústria no mundo. A empresa brasileira Forjas Taurus, uma das principais do ramo, divulgou em seu site que teve lucro de 7,9% no terceiro trimestre de 2012, alcançando receita consolidada de R$ 151,1 milhões. O mesmo site revela que a empresa tem ações na BM&FBovespa, a bolsa oficial do Brasil, atingindo nível 2 de Governança Corporativa. A insaciável indústria de armas tinha que aumentar sua frente de capital e assim o fez. Há países que fazem propaganda dizendo que estão em missão de paz no Haiti, enviam tropas, mas na verdade o que fazem mesmo é vender armas para o país. É aquela história de ganhar dos dois lados, comum nesse tipo de ramo. Se você não tem arma em casa – e alguns outros poucos produtos que eles vendem pra dizer que não são somente assassinos –, pode se orgulhar de não ter contribuído com o enriquecimento desses canalhas e a morte de pessoas.
Explicada essa conjuntura, há de se dizer que não há nenhum tipo de segurança que dê conta de matadores em série que atacam universidades e escolas. Se todo estabelecimento tivesse uma dupla de policiais armados na entrada, o assassino iria arrumar uma forma de matar os dois ou contorná-los e continuar com seus planos. A medida que alguns parlamentares querem tomar no Congresso dos EUA, impedindo a venda de armas de assalto, não será um golpe duro nesses massacres. Pode reduzir o número de vítimas, mas os assassinos saberão onde encontrar as armas. O quê não pode é a continuação da venda de armas como se fosse pão, algo comum, que se atém ao universo de quem compra e de ninguém mais. Nos EUA, quando se permite que civis tenham armas, é o mesmo que dizer: você tem o direito de matar e outras pessoas o direito de morrer, então compre sua arma para ter somente direitos e não deveres,para que mate e não morra.
Para algumas pessoas, a sensação de impotência também entristece. Impotência de não poder ajudar com alguma coisa, ou de ver o bandido preso e poder perguntar por quê ele fez aquilo ou exigir pena de morte, essas coisas que vem na cabeça de familiares, amigos e anônimos revoltados com o que aconteceu na escola dos EUA. Esses matadores não querem aparecer em vida, pois sabem que vão morrer. Tem conseguido aparecer em morte, obtendo uma visibilidade que talvez procurassem quando vivos. Enquanto você lê esse texto, é óbvio que há outros assassinos que observam tudo de longe nos EUA e em outros lugares. Daí, esperam a poeira baixar sobre o caso que está repercutindo na mídia para fazerem a mesma coisa e, assim, terem exclusividade no seu ato. Se é uma doença não sei, mas existe, e todos eles querem uma visibilidade que não tiveram em vida.
Então, enquanto houver armas, vão ter pessoas matando e morrendo. Mesmo com as restrições, ainda é relativamente fácil se conseguir uma arma, e até incentivado em alguns países, como os EUA. Só falta venderem pistola combinada com pão e leite. Enquanto não criarmos a cultura do respeito, de valorizar o próximo, entender que ele tem laços, relações, que ultrapassam desentendimentos pessoais ou outras pendências, vamos assistir à homicídios, seja na conquista de um tênis, na fuga de um assalto à banco ou numa chacinaem escola. Até mesmo muitos comunistas abandonaram a ideia de revolução armada, dado o avanço da tecnologia militar e as guerras que cada vez mais se fazem apertando botões ao invés de gatilhos. Sou desses comunistas! Não dos que já acreditou em revolução armada, mas dos que acham que revolução se faz na consciência, na emancipação coletiva, horizontal, pela educação de um povo, e não na ação forçada por quem quer ser vanguarda e tomar o trono dos autoritários de outrora. Não acredito em Deus, sou agnóstico, mas é em momentos como esses, do massacre de 20 crianças de 6 e 7 anos, que só posso imaginar que qualquer lugar fora desse planeta, dentro da ciência ou em um outro plano espiritual – que também não acredito mas se acreditasse seria dessa forma –, é mais seguro do que viver subjugado à sede de indústrias armamentistas por dinheiro e a de pessoas que se dizem cristãs ou com outras crenças em melhorar o mundo, tornando-o uma arena permanente.
É assustador assistir filmes como os de Michael Moore e ver que em algumas cidades nos EUA, dependendo do tipo de conta que se abre no banco, ganha-se como incentivo uma arma. Não sei por quê mas eu nunca me acostumei com essa imagem passada nos filmes de que todo mundo tem uma carabina em casa e aí não pode nem cair uma bola no quintal do vizinho que sai alguém enfezado segurando uma escopeta e perguntando o quê estão fazendo naquela propriedade. Está aí o símbolo da civilização, pra quem acha bonito as cercas vivas e a falta de muros nas casas dos EUA. Prefiro mil vezes a cordialidade dos brasileiros, mesmo o problema das armas tendo chegado por aqui.
Bem, o revólver de plástico continua em minha casa. Está lá parado, sem nenhuma função. Se alguém quiser, pode pegar, é de graça, e me conte se achou alguma finalidade. Sobre um revólver de verdade, vão me ver enterrado com a bandeira do Vasco da Gama em cima do caixão e não irei pegar numa desgraça dessas, nem pra brincar de caçar ou atirar em latinhas. Fico satisfeito em atirar nos biscoitos do Fofão, aqueles da embalagem verde brilhante, da década de 1980, no Parque de Diversões Nicolândia em Brasília. Sendo assim, minha preferência é conectar sustentabilidade através da educação, que é o que realmente muda a realidade sem matar ninguém.