“Parece até desculpa, que toda vez que a gente perde parece desculpa dizer que precisa de apoio. É repetitivo. Ganhando ou perdendo, vamos falar isso. Tem que começar lá embaixo, nas escolas. Não quero parecer para todo mundo que estamos usando isso como desculpa. Perdendo ou ganhando, tem que dar continuidade na modalidade.”
Cristiane, maior artilheira do futebol olímpico (incluindo os homens) após derrota do Brasil para a Suécia nas Olimpíadas Rio 2016.
Se há algo que chamou a atenção do Brasil nas olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016 é a participação feminina. Uma atenção ainda secundária, efêmera, é verdade, mas um início em que podemos encontrar um flanco aberto para pautar questões referentes à gênero na sociedade brasileira. Para isso, três pontos são relevantes no debate: a divisão sexual do brincar, a prática de esportes por mulheres e o papel da escola como instrumento de transformação.
Provavelmente você já ouviu falar de divisão social do trabalho e, não raro, na divisão sexual do trabalho. Esta divisão, tanto social quanto sexual, ocorre também com o brincar, ou seja, quando principalmente a parcela de crianças que não está abandonada à própria sorte trabalhando em semáforos ou sendo violentada sexualmente começa a frequentar o ambiente escolar. Se formos rigorosos, veremos que até antes disso: na decoração de nosso quarto e aniversários, nos brinquedos, nas relações com nossos pais, familiares e amigos, em tudo encontraremos o binarismo do carrinho versus boneca, rosa versus azul, dar porrada versus chorar copiosamente.
Como heterossexual e professor de Anos Iniciais de uma turma de 5º ano (10/11 anos), é natural ver que os meninos, desde a mais tenra idade, se apoderam dos espaços da escola para fazer o que quiser: jogar bola, conversar, brigar, correr. As meninas que saiam da frente. Vou além: trabalhei numa escola em que um professor organizou um campeonato entre as turmas do 4º e 5º anos em que as crianças, dependendo de seu sexo, poderiam jogar futebol e/ou queimada. Os meninos jogavam futebol e as meninas – e os meninos que quisessem – jogariam queimada. Deixei claro que em minha turma era a vontade de cada criança e não o seu sexo que determinava no que iriam participar, e assim foi feito. Em poucos jogos, o time de minha sala era o líder do campeonato de futebol, jogando com time misto. Sobrou pro professor machista inventar uma desculpa esfarrapada e acabar com o campeonato antes que fosse contrariado pela prática: as mulheres podem sim jogar futebol. E ganhar dos homens!
Não deve haver nada mais torturante para uma criança do sexo feminino do que ser forçada a brincar de boneca e casinha: hora de dormir, de acordar, de comer, faz comida pro marido, cuida dos filhos – um inferno astral! Enquanto isso os meninos brincam de mil coisas e trocam suas regras a cada segundo, e se entendem muito bem assim. O que quero mostrar aqui é que a divisão sexual do brincar precede e constrói a divisão sexual do trabalho. Ora, se durante toda a sua vida você vestiu rosa, foi impedida de jogar futebol na escola e realizou uma série de papéis sociais que já estavam pré-determinados, por que diabos vai inventar de querer representar o Brasil em jogos olímpicos num esporte como o futebol ou no judô? Com a conquista de medalhas por mulheres, a coisa começa a mudar.
Muitas das críticas que se faz em redes sociais sobre a participação feminina nos esportes não têm nada de técnico e sim de opressão de gênero. A participação de mulheres no vôley de quadra ou de praia, por exemplo, já era visto como natural. Se o esporte é sem contato e não oferece risco à chamada fragilidade feminina então não tem problema, arriscam os sexistas de plantão. Contudo, os mesmos sexistas deixam claro que o homem também pode participar do vôley e de outros esportes em que as mulheres participam, uma vez que à este sexo estão reservados todos os espaços, do esporte como brincadeira ao esporte como trabalho.
Voltemos ao que disse a atacante Cristiane: “tem que começar lá embaixo, nas escolas”. Pois é, este é um grande desafio minha cara Cristiane. Qualquer pessoa que a partir de hoje olhar para dentro das quadras esportivas escolares vai ver que as mulheres não só não jogam futebol como também não jogam outras modalidades. Os esportes, todos eles, são monopolizados pelos homens e com o aval de docentes. Justificam que a maior demanda é futebol masculino. Pensemos: futebol ou outro esporte é patente dos homens? Joga-se com o pênis? Seios atrapalham a jogar? A demanda é socialmente construída e é doloroso ver que colegas professoras naturalizam o machismo de que são vítimas achando comum a exclusão de suas alunas no meio esportivo, na tomada de decisão, no poder de dizer não. Se acha que estou errado, observe a cultura do estupro e volte a ler este parágrafo que vai fazer sentido.
Reitero o pedido: faça o exercício de passar nas escolas e ver qual é o sexo e o esporte dominante nas quadras. Para quem é docente, sugiro que vão além e perguntem por qual razão as alunas não praticam esportes. Experimente andar pelas escolas e observe se há mulheres praticando esporte. Adianto que quanto mais se aproxima do Ensino Médio, mais difícil de perceber essas amarras que coloquei no texto, justamente por causa de uma construção histórica que dura mais tempo e com vícios difíceis de se reverter por tomarem conta de aspectos subjetivos dos sujeitos. Numa turma de 1º ano as crianças correm livremente na quadra. À medida em que vão crescendo, os alunos e indiretamente a classe docente ensina às alunas que não é para elas ficarem na quadra pra não se machucar, como se a função da quadra fosse esta. Analogamente, perceba que cada participação e medalha de mulheres, das olimpíadas ao campeonato entre turmas de uma mesma escola, representa mais do que a superação em um esporte. Representa, isto sim, um passo adiante na luta contra o patriarcado.
A escola, evidentemente, seria uma alavanca no trabalho contra a divisão sexual do brincar que transforma-se na divisão sexual do trabalho. Não falo de aberrações como o Escola sem Partido ou da escola de fundamentalistas religiosos que não querem discutir gênero porque acham que o “sexo biológico” deve ser determinante nas relações sociais. Falo da escola em que há debates, em que os espaços de coordenação sejam pensados para planejamento e tomada de decisões e não de mera leitura de instrumentos burocráticos do governo e outras posturas frouxas, como se devêssemos algo ao governo das propinas de Rodrigo Rollemberg. Escola que faça o embate com parlamentares, como bem fez o Centro Educacional 6 de Ceilândia (DF) ao ser interpelado por Sandra Faraj (péssima deputada distrital) sobre um trabalho com o tema sexualidade coordenado pelo professor Deneir de Jesus Meirelles. É esta escola que vai ter a coragem necessária de ser a exceção que vai virar exemplo: possibilitar o protagonismo feminino desde criança, formando uma geração que respeita as mulheres, inclusive nos esportes.
No Brasil é comum darmos um jeitinho para acompanhar os jogos da seleção brasileira masculina de futebol no trabalho, famosa por ter os jogadores mais bem pagos do mundo. Em compensação as jogadoras da seleção feminina de futebol tem menores salários, ganho de marketing e visibilidade que a seleção masculina, embora apresente melhores resultados. Pergunto: quem se importa em ver os jogos da seleção feminina mesmo que durante sua folga no domingo? Finalizo o texto repetindo pela terceira vez o que disse a Cristiane: “Tem que começar lá embaixo, nas escolas”. Essa frase da Cris, concretizada, ajudaria não somente o esporte, mas toda a população brasileira a sair, definitivamente, da Idade Média.
E parabéns à Suécia. Parabéns por ter um currículo nacional que promove o protagonismo feminino. Parabéns por 480 dias de licença parental (e não licença maternidade) para cada filho, sendo 2 meses pro pai, 2 meses pra mãe e os 420 dias restantes divididos de acordo com o casal, que pode ser homoafetivo. Parabéns por obrigar que 40% dos conselhos de administração das maiores companhias suecas listadas na bolsa de valores seja composto por mulheres. Parabéns por ter 28% de suas mulheres na administração de suas maiores companhias. Parabéns por estimular o trabalho doméstico realizado por homens. Parabéns por ter jardins de infância em que profissionais são orientados a não diferenciar brinquedos para meninos ou meninas. Não sou desses que tem síndrome de vira-lata e adora criticar o Brasil, mas no quesito igualdade de gênero nosso país não foi nem classificado para participar da disputa. Já a Suécia, ainda que com problemas, é ouro há muito tempo.