Por volta de 17h05 o telefone de Maria tocou. Era uma amiga que, esbaforida, gritava:
– Parabéns lindaaaa! Vai pagar a pizza!
Maria esqueceu completamente o dia em que seria divulgado o resultado do vestibular da UnB. Tomou um susto! Gaguejando, retornou à amiga:
– Você tá-tá-tá falando sé-sé-rio?
– Mas é claro Maria! Vê se eu ia brincar com uma coisa dessas. Entra aí no site da UnB e vê seu nome. A menos que aprovada seja não passar, você tá dentro amiga. Muito feliz por você. Vamos pra lá comemorar. Te encontro na entrada norte. Chamam de Ceubinho. Corre, não demora.
Maria foi na internet, acessou o site da UnB e viu seu nome. Não acreditou. Viu de novo! Não acreditou de novo. Viu por uma terceira vez e gritou pro Cruzeiro inteiro ouvir:
– Mãe eu passei!
A mãe lhe deu um abraço apertado e chorou. Dona Vera era seu nome. Há bastante tempo alugou uma quitinete no Cruzeiro Center. Trabalhava de costureira no mesmo prédio e seu marido, Carlão, padrasto de Maria, era porteiro no Cruzeiro Novo. O pai biológico de Maria abandonou a mulher grávida, como abandonou outras, quase sempre grávidas. Carlão, que conheceu Vera grávida, assumiu Maria e com ela teve mais dois filhos, José e Danilo.
Maria vestiu a roupa mais velha que tinha, pois sabia que ia levar ovada, e postou no Facebook #partiuUnB #caloura2016 acompanhada de uma selfie, claro. Naquele momento passou um filme na cabeça de Maria…
No ônibus que fazia o trajeto para a Asa Norte, passando pelo terminal do Cruzeiro Novo, Maria lembrou que teve dificuldade em matemática no 8º ano para entender a diferença entre quadrado da diferença e diferença dos quadrados. Era muita diferença mas Maria só enxergava multiplicação e o professor brigando pelas suas perguntas, sempre repetidas, mas sempre com dúvidas, claro. Foi aí que sua memória teve flashes e lembrou da professora do 1º Ano que lhe ensinou o que era contorno e que só podia pintar até ele. Neste instante Maria aperfeiçoou o uso do polegar opositor e, pintando, aprendeu a posição que usa até hoje para escrever e realizar outras tarefas.
O ônibus, nesse momento, chegava perto da entrada do Parque da Cidade. Maria olhou uma placa escrito “vendo apartamento mais exijo entrada de 30%”. Lembrava-se agora que a professora do 9º ano ensinara aos berros a Aninha – a amiga que ligou dando o resultado do vestibular – a diferença entre mas e mais. Mas – sem o i –, lembrou-se também da professora do 5º ano que lhe havia dito que quando se representa uma ideia oposta ao que se falou primeiramente, usa-se o mas, e quando se escreve querendo dar ideia de soma, usa-se o mais.
Maria via sua vida escolar passando aos poucos pela janela suja… O barulho ensurdecedor dos bancos velhos do transporte público a traziam para a realidade, como num balanço.
Ao passar pelo Setor de Indústrias Gráficas, olhou para a esquerda e viu o Sudoeste. Leu na carroceria de um caminhão: Metais Paraenses. Recordou a época em que estava no 1º ano do Ensino Médio e teve que estudar a tabela periódica. Queria ter dinheiro pra fazer reforço escolar, mas trabalhava diuturnamente para ajudar a manter a casa, sobrando a parte da noite com hora-aula de 45 minutos para concluir os estudos. Por mais que não tivesse que trabalhar, não conseguiria reforço escolar, pois essa é uma prática que acaba ao entrar nos Anos Finais do Ensino Fundamental. Maria lembrou agora de quando estava no 4º ano e o professor lhe explicava cuidadosamente, no contraturno, as regiões administrativas do DF, as operações envolvendo divisão, as tipologias textuais…
Bocejou bem devagar…
O ônibus chegou ao Eixo Monumental e Maria avistou o Memorial JK. Agora a lembrança era das aulas de história do 3º ano do Ensino Médio. Lembrou de um professor que quase não falava em aula e dizia:
– Gente, estudar o período populista é fácil. Tem no Youtube, nos slides que mandei pro e-mail da turma, nos jornais, não aceito ninguém errar isso na prova.
Foi aí que Maria,que não tinha computador ou internet em casa – e se virava no seu smartphone que comprou usado – lembrou das aulas de história de quando era criança: tinha teatro, música, trabalho com arte, a professora se pintava e contava a história de uma forma bem mais divertida. Certa vez, quando criança, Maria perguntou à mãe se ela tinha conhecido alguma escrava, o que demonstra que não compreendia a periodização da História do Brasil. Bem, Maria conseguiu ser aprovada com o professor virtual porque lembrou que sua professora tinha dito, não com essas palavras, que história é a nossa vida, está em tudo e devemos fazer associações não para lembrar datas, mas para contextualizá-las.
Ainda no Eixo Monumental, pouco antes da Torre de TV, Maria deu sinal e desceu. O ônibus a deixaria na L2 Norte, perto da UnB, mas Maria desceu antes. Desceu e logoem seguida pegou um ônibus para a Asa Sul. As recordações de sua vida escolar não paravam e, por mais que se lembrasse do nome de todos os professores do Ensino Médio, deixou uma lágrima escapar ao reviver em pensamento as aulas de educação física, flauta doce e reciclagem de papel na Escola Parque da 308 Sul nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. O telefone tocou. Era Aninha:
– Maria, cadê você? Tá todo mundo aqui! Os professores trouxeram uma faixa bem grande com o nome da nossa escola. Vem logo comemorar e agradecer.
– Pois é Aninha. Pensei nisso mesmo. Já cheguei pra fazer isso.
– Não te vejo. Levanta a mão. Tô aqui ao lado do portão. Onde você está?
– Na Escola Classe 305 Sul.
– Oi?
– Vim agradecer a quem de fato contribuiu, no que diz respeito à escola, com a maior parte da minha aprovação no vestibular. Vim agradecer aos professores da Escola Classe 305 Sul. Beijo amiga, depois nos falamos.
Depois disso, desligou o telefone. Era uma sexta-feira e faltavam 5 minutos para a saída. Alguns pais já levavam as crianças pela mão. O guarda indagou:
– Posso ajudar moça?
– Não, obrigada. Só vim me olhar.
– Como?
– Vim sentir meu cheiro, ver meu vestido da festa junina, ver meus dedos com tinta, colocar meus pés aqui de novo. Enfim… Vim me olhar e agradecer.
O sinal tocou e aquela criançada toda saiu correndo pra frente da escola. Professoras saíam com mais calma, pedindo às crianças para não correrem. Com a escola quase vazia, abre a porta uma menina de uns 10 anos banguela, de óculos, correndo com a lancheira em uma das mãos e um desenho na outra. O cadarço desamarrado, por sorte, não a fez cair. Maria e a menina se deslocavam em caminhos opostos e não havia fonte sonora para se calcular Efeito Doopler. O silêncio é quebrado pelo som de uma caixinha com uma bailarina que rodava e a transportava para um tempo passado, para um pretérito perfeito, que Maria ganhara no Dia das Crianças. A garotinha passa por Maria atônita que, quase se enxergando na menina, sente uma brisa gostosa. O transporte escolar da aluna já buzinava. A menina deixa o desenho cair e, como quem não quer saber, entra na van para ir embora. Maria chama:
– Ei, menina, espera, o seu des…
A van acelerou. Maria, que pegou o desenho pelo lado que estava em branco, virou o papel. Era o desenho de uma menina na grama, sorrindo, brincando com tinta. Numa cadeira, desenhada de lado, um animal – parecia uma coruja – olhava pra frente. No canto direito, em letra de forma, lia-se: Maria.
E foi assim que a Escola Classe aprovou Maria e milhares de outras pessoas na UnB.
Que história linda! Conheço a Escola Classe 305 Sul. Bateu uma saudade… Trabalhei lá 3 anos, amo! Parabéns Maria!
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Pois é Valdenira. Por “coincidência”, minha escola.
Abraços e obrigado pelo retorno.
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Linda e emocinante história !
Estou realmente encantada, como se assistisse um filme…
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Obrigado pelo retorno Regiane.
Abraços.
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Que lindo Rafael…
100 palavras…
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Oi Amanda. A beleza do texto é porque de fato a Escola Classe 305 Sul foi uma das melhores vivências que tive. Tenho certeza que também gostava da escola.
Abraços
Rafael Ayan
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Boa noite! Hoje li seu texto e me emocionei. Sou professora na EC 305 Sul há muito tempo e fico muito contente quando vejo histórias como a sua. Que tal divulgá-la no nosso blog? A EC 305 Sul está fazendo 50 anos e seria uma honra poder compartilhar seu texto com outros alunos.
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