A mágica do aprendizado de novos signos…

Para começar a contar a minha história com as letras, números e outros signos não começarei pelos meus pais, mas pelos meus avós. Por parte de meu pai, não conheci os meus avós, mas sei que meu avô paterno era português e exigia uma educação rígida dos filhos, ao passo que minha avó materna ajudou a criar meus irmãos (sou o filho caçula) na mudança de meus pais de Belém para Brasília. Meu pai finalizou o Ensino Médio cursando técnico em contabilidade e trabalhou como caixeiro viajante (profissão extinta) no interior do Pará, vendendo livros e remédios. Conheci meus avós maternos e tenho uma boa lembrança deles. Cibhy Ayan, um sírio que chegou no Brasil na década de 1930, não deixava as filhas estudarem. Minha mãe, portanto, estudou até a quinta série e somente uma irmã concluiu o Ensino Superior, ao passo que os homens, se não optavam pelo estudo, ajudavam no comércio com o pai. Minha avó materna cuidava dos 14 filhos e meu avô administrava o comércio em Belém, além de ter que prover os 14 filhos com minha avó e outros filhos de uma segunda esposa. É desse contexto que inicio minha prática de aprendizagem.

Desde criança fui cercado de muito material em língua portuguesa. Sempre tive muitos gibis ou revistas jornalísticas em casa, fruto do trabalho de meu pai como “publicitário prático” – na época em que trabalhou a graduação não era tão necessária como é hoje. Andava a chutar páginas e páginas de letras pela casa, ouvindo minha mãe reclamar que tudo sempre estava desarrumado, mas aquela desarrumação, com aqueles signos, mesmo que minha mãe não percebesse, iriam fazendo sentido em minha cabeça. Chutei o A, o B, o C, maiúsculo e minúsculo, em várias fontes, de vários tamanhos, e devo ter chutado muitas outras letras e números que não me recordo agora. O A, o B e o C me lembro que chutei. Também chutei gravuras, capas, editoriais, opiniões. Tudo que passava pela minha frente era como o Mandarim para a maioria dos brasileiros, mas com o tempo se tornou, cada vez mais a minha língua, a minha forma de comunicação com o mundo.

O fato é que desde muito pequeno o meu pai sempre jogava aquelas letras em cima de mim. Às vezes pegava em meu braço, outras na perna, pegava no ombro. Em cada lugar que me tocavam alguns signos ficavam e outros caiam no chão para serem varridos, ou melhor, eram varridos, mas não precisava. Talvez se eu passasse novamente poderia aproveitá-los, ali pelo chão, para compor uma musica. No início, o que mais ficavam em mim eram as gravuras. Com três anos, eu já sabia ler gravuras e não as estranhava como um recém-nascido. Ainda bem! Um pouco mais tarde, li a palavra cachorro, numa revista de cães que tinha em casa. Lembro-me perfeitamente disso, porque associo o aprendizado dessa palavra com a Tuty – com um t e um y, era assim que se escrevia o nome dela – uma cadela vira-latas que tínhamos em casa. Hoje, como Pedagogo e professor, acho no mínimo curioso que tenha lido uma palavra com dois dígrafos, mas era o que fazia sentido para mim, era cachorro, não era o que insistiam em me ensinar na escola, em casa ou nas aulas de reforço que volta e meia eu fugia para ir jogar bola, até minha mãe descobrir e me levar até a casa da professora.

Com o passar do tempo, meu corpo foi ganhando mais cola, e cada vez eram varridas menos letras do chão de casa. Recordo-me que meu pai era diretor no Estado de São Paulo no fim da década de 1980 e eu estava começando a me alfabetizar. Aqueles jornais largados pela casa iam cada vez mais sendo incrustados, acho que é essa a palavra, ao meu corpo, à minha subjetividade, e eu ia crescendo e absorvendo todos aqueles signos. Foi assim com o DCI (Diário, Comércio e Indústria), com a revista Globo Rural, com o Meio & Mensagem e outras publicações em que meu pai trabalhou. Era ele entrar para trabalhar numa empresa e, como um ímã, quando eu me aproximava dos signos que estavam naquelas revistas, eles pouco a pouco tomavam conta de mim.

Hoje vejo o quanto foram importantes esses signos em meu aprendizado e minha paixão pela escrita e pela leitura. É claro que não descarto o papel dos professores que tive na Escola Classe 305 Sul e das aulas de artes e práticas desportivas na Escola Parque 308 Sul, em Brasília. Não, de forma alguma poderia esquecer que sei N + O = NO porque é a primeira sílaba de nota, e foi na Escola Parque que aprendi a tocar flauta doce e hoje ensino para meus alunos. Não esqueci que T + A = TA porque é a segunda sílaba de lata, e foi numa campanha de reciclagem em 1992 na Escola Classe 305 Sul em que comecei a minha coleção de latinhas que tenho até hoje encaixotada em algum lugar aqui de casa.

Porém, é inegável que sem quadro, sem sinal sonoro que parece sirene de presídio, sem uniforme, sem cadeiras duras e currículos desvinculados de minha realidade que saíram da cabeça de algum desses burocratas que insistem em falar de educação sem nunca ter pisado em uma escola, também aprendi muita coisa. Foi chutando as letras, os números, as gravuras, as músicas, os vídeos, quando ainda nem sabia identificar seu significado, que passei a dominar esses signos e conheci meu primeiro professor, sem sequer ele dizer que estava me ensinando. Valeu meu velho! Valeu pai!

Sobre ayanrafael

Pedagogo, Assistente Social e Mestre em Educação pela Universidade de Brasília. Trabalhou como técnico-administrativo na Universidade de Brasília, como Professor de Atividades da SEEDF (Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal) e atualmente é Especialista Socioeducativo - Pedagogo na Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal, lotado no Centro Integrado 18 de Maio.
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